17/12/2017 12:00 - Geraldo F. Garcia, Carlos H. Rocha e Jéssica M Jorge
O número de veículos automotores em circulação tem aumentado rapidamente. Em 2012, eram quase 50 milhões, praticamente duplicando o número de 10 anos atrás (Ministério do Meio Ambiente, 2014). Em um ambiente onde a infraestrutura tem sido idealizada e construída para o uso do automóvel, as cidades brasileiras vêm enfrentando inúmeros problemas. São congestionamentos cada vez maiores, dificuldades para estacionar, principalmente nas áreas mais centrais das cidades, emissão de gases poluentes, acidentes, tantas vezes fatais, e uma grande ocupação dos espaços públicos urbanos entre vias e estacionamentos. O resultado tem sido a diminuição da qualidade de vida nas cidades. Não é razoável, no entanto, estabelecer políticas de restrição ao uso do automóvel sem oferecer uma alternativa equivalente em termos de tempo, custo e segurança nos deslocamentos urbanos.
Diante dessa situação, os governos (federal, estadual e municipal) se empenham para oferecer serviços de transporte urbano, como os BRT, VLT, monotrilhos e metrôs. Todos eles, entretanto, mas especialmente o metrô, representam um considerável peso financeiro para as cidades. Cobrir os custos de implantação, além dos custos de operação e manutenção (CO&M), requer que os envolvidos levantem fundos de capital de várias fontes, como subsídios, empréstimos, receitas tarifá- rias, investimentos públicos diretos e emissão de títulos e obrigações.
Em tese, a principal fonte de recursos para o transporte público deve ser a receita proveniente das tarifas, mas poucas empresas de transporte no mundo conseguem cobrir os seus custos de capital e de O&M apenas com as receitas tarifárias, além do que o valor da tarifa é normalmente regulado em função de sua natureza pública. Considerando, de forma mais ampla, o papel econômico, ambiental e social do sistema de transportes, incluindo um conjunto de externalidades positivas e benefícios sociais, os governos em geral ajudam os operadores a fecharem o seu déficit financeiro, e usualmente o fazem provendo capital ou subsídios operacionais para as companhias de transporte, especialmente quando tem que compensar perdas fiscais atribuíveis a exigências regulatórias, como servir a áreas remotas, garantir os serviços em horários de pouco movimento e ainda cobrar tarifas acessíveis. Governos também transferem receitas de taxas e impostos cobrados dos usuários dos automóveis, mas quando isso não é suficiente, eles têm que procurar fontes alternativas (Suzuki, Murakami, Hong, Tamayose, 2014). A busca por métodos alternativos e flexíveis de geração de receitas e o desenvolvimento de arranjos financeiros para investimentos em transportes é um processo em curso no mundo e tarefa primordial na atual situação econômica (Medda, 2012).
Este artigo procura apresentar uma alternativa para o financiamento da infraestrutura, operação e manutenção (O&M) do metrô. Trata-se da captura da valorização da terra provocada pela ação do governo, seja por meio de mudanças regulatórias, pela construção de uma estação de metrô ou por benfeitorias diversas nas áreas urbanas em suas proximidades, conhecida internacionalmente por land value capture - LVC. Este modelo funciona melhor ainda quando combinado com a estratégia de desenvolvimento urbano orientada ao transporte, ou transit-oriented development - TOD. O artigo mostra ainda como a legislação brasileira trata o tema e, para ilustrar o conceito, apresenta como ele tem sido implantado, com êxito, no Japão.
1. TRANSIT-ORIENTED DEVELOPMENT (TOD)
O conceito TOD, primeiramente proposto pelo arquiteto Peter Calthorpe
(1993), é um termo que propõe o desenvolvimento de bairros
de uso misto em torno de estações do transporte público, normalmente
em um raio de até 800 m, uma caminhada de 10 minutos à
velocidade de 5 km/h, com altas densidades nas proximidades das
estações, decrescendo conforme aumenta a distância. Bairros de uso
misto são semelhantes a pequenas cidades, apresentam razoável
autonomia ao oferecer variados tipos de serviços, diferentes construções e espaços públicos, tais como habitações, locais de emprego,
lojas, prédios de escritórios, locais de lazer, praças e parques, tudo
isso a uma pequena distância até a estação do transporte, que pode
ser facilmente percorrida a pé ou de bicicleta. Além disso, as habitações
nesses bairros devem ser de tipos e preços variados, de forma
a oferecer oportunidades a famílias com rendas e interesses distintos.
Soluções TOD reduzem as distâncias dos percursos urbanos ao aproximar
locais de maiores atrações de viagens e, dessa forma, incentivam
as caminhadas. Esses locais devem, pois, oferecer condições
favoráveis e agradáveis aos pedestres, como boas calçadas, caminhos
diretos entre os pontos de maior atração e geração de viagens,
atratividades para as pessoas como lojas, restaurantes e bares, áreas
verdes, parques, praças e locais para sentar e descansar. Um local
favorável aos pedestres permite autonomia às crianças, acesso aos
idosos e, para alguns, a oportunidade de caminhar (Calthorpe, 1993).
TOD, porém, não se trata de uma proposta de planejamento apenas
para um bairro, mas para uma cidade como um todo. O seu conceito
se expande na medida que replicamos essas áreas urbanas em torno
das estações de transportes, especialmente do metrô, criando um
sistema de bairros semiautônomos conectados entre si pelo transporte
público. Trata-se de uma proposta de configuração urbana que se
desenvolve ao longo de eixos de transporte.
2. LAND VALUE CAPTURE FINANCE (LVC)
A terra tem o seu valor intrínseco, aquele que o proprietário pagou por ela, mas ela também pode se valorizar ao longo do tempo, por exemplo, com o aumento da população, com o desenvolvimento econômico da região, com investimentos do proprietário, com a implantação de novas infraestruturas urbanas ou com mudanças nas regras de uso do solo.
Especificamente, o impacto dos investimentos em infraestruturas de
transporte no valor da terra tem sido debatido há muito tempo, devido
em grande parte ao complexo mecanismo de capitalização induzida
pelo trânsito sob diferentes condições urbanas. Conceitualmente, o
aumento da acessibilidade e da produtividade são as causas dos
ganhos econômicos externos dos investimentos em transportes, que
são capitalizados no valor das terras próximas às instalações de transportes.
Acessibilidade é a facilidade que a pessoa encontra para se
deslocar entre os seus pontos de interesse, como a residência, o trabalho,
a escola, o comércio ou os locais de lazer, e a produtividade
aumenta com a aproximação entre as atividades econômicas e sociais
que permitem o apoio entre empresas no processo de produção e o
compartilhamento de insumos, infraestrutura e serviços (Suzuki et al.,
2014). Existe também a possibilidade de que as propriedades localizadas muito próximas às estações possam sofrer um impacto ambiental
negativo, como ruído e poluição (Mulley & Tsai, 2016). Sob a ótica da
eficiência, vista como uma forma de buscar economia de meios,
ganhos de produtividade e funcionalidade, a vida urbana cotidiana
pode ser equiparada a um contínuo processo de deslocamentos e interações.
A eficiência desses procedimentos envolve distribuição espacial
de atividades e minimização de distâncias, em que os transportes
assumem um importante papel na redução da distância-tempo entre os
diversos pontos da cidade, a distribuição das rotas de transporte urbano
e regional criam uma hierarquia de localizações (Krafta, 2014) que se
traduzem na valorização do imóvel conforme sua proximidade ao transporte
público. O preço das habitações, no entanto, não é afetado apenas
pela intervenção nas infraestruturas de transporte, mas também
por outros fatores como os atributos da própria propriedade e os atributos
da vizinhança, que são usados para explicar a influência de
características externas sobre o preço das propriedades (Mulley & Tsai,
2016). A literatura sugere ainda que o grau de impacto dos transportes
públicos no valor das propriedades pode ser afetado pela existência de
políticas públicas coordenadas de uso da terra, de áreas disponíveis
para novos desenvolvimentos, de tendências econômicas e de condições
físicas e sociais favoráveis (Du & Mulley, 2007), em que soluções
urbanas integradas, como as estratégias propostas pelo conceito TOD,
potencializam a valorização da terra.E quem deve ficar com este acréscimo
na valorização da terra provocada por ações dos governos, os
moradores locais ou a comunidade? Há certo consenso de que beneficiários
de investimentos públicos ou decisões públicas que aumentam
o valor de suas propriedades devem cobrir parcialmente os custos
dessas ações ou retornar seu benefício à sociedade (Suzuki et al.,
2014). Sob este entendimento se apoia o conceito de land value capture
finance (LVC), ou financiamento pela captura do valor da terra. LVC
pode ser definido como um método de financiamento público no qual
o governo provoca um incremento no valor do solo via decisões regulatórias,
como a mudança de destinação no uso do solo ou o aumento
no índice de aproveitamento do terreno (IAT) ou ainda via investimentos
no local, como a implantação de infraestrutura de transporte público e
institui um processo de divisão deste adicional de valor entre os interessados
(moradores, proprietários, empreendedores) ficando, ele
mesmo, com parte para financiar os investimentos em infraestrutura,
como os transportes e outras melhorias locais (Suzuki et al., 2014).
LVC possibilita alcançar amplos objetivos públicos e privados (Medda,
2012). Seus instrumentos variam muito, mas podem ser divididos em
dois grandes grupos: LVC baseado em taxação, ou baseado em
desenvolvimento. Os instrumentos baseados em taxação capturam o
aumento do valor da terra por meio de tributações como, por exemplo, pelo aumento do imposto sobre propriedade, pela contribuição
por melhorias ou por tributações especiais. Já os instrumentos LVC
baseados em desenvolvimento, mais detalhados a seguir, capturam
esses incrementos por meio de transações diretas com os terrenos ou
por mudanças na legislação do uso do solo (figura 1). Os modelos
baseados em desenvolvimento têm algumas vantagens sobre os
baseados em taxação. Eles têm maior potencial de financiar investimentos
de capital intensivo sem significativa oposição pública, como
ocorre nos modelos baseados em taxa, e podem gerar, além das
receitas diretas do aumento do valor da terra, recursos mais sustentáveis
a longo prazo por meio do aumento do número de passageiros
no metrô, além de novos centros comerciais, áreas de lazer e prédios
residenciais no entorno das estações (Suzuki et al., 2014), produzindo
novas rendas, empregos e mais impostos
Tipicamente, as cidades vendem a terra, concedem o direito de uso, fazem projetos conjuntos, determinam as regras de uso do solo ou negociam os direitos aéreos. Nos direitos aéreos, governos podem vender direitos adicionais de desenvolvimento, que permitam densidades maiores ou prédios mais altos, além dos limites especificados na regulamentação do uso da terra. Já um projeto conjunto é uma cooperação entre o setor público e empreendedores privados e pode garantir que o desenvolvimento de uma estação de transporte público ou das propriedades adjacentes seja feito com os proprietários contribuindo financeiramente ou fisicamente com as construções, porque o valor da sua propriedade vai aumentar. Dois tipos de projeto conjunto que têm sido usados com sucesso serão apresentados a seguir: processos de reparcelamento das terras (land readjustment) e o de redesenvolvimento urbano (urban redevelopment).
Land readjustment (LR), ou reparcelamento do terreno, originou-se na Alemanha em 1902 e foi incialmente usado para a consolidação de terras agrícolas. Hoje podemos entendê-lo como estratégia para a redefinição dos limites das unidades fundiárias via participação dos proprietários, usado como método de desenvolvimento regional por meio da implantação e melhoria da infraestrutura urbana sem precisar recorrer ao instrumento da desapropriação. Tipicamente, os proprietários agrupam suas terras, formando um consórcio, para reconfiguração e melhorias do local e recebem uma quantidade de terra urbanizada (ou unidades em edificações) diretamente proporcional a sua contribuição original. Durante a reconfiguração, uma porção de terra
é reservada para a venda, de forma a obter recursos para cobrir uma parte dos custos do redesenvolvimento, capturando benefícios gerados pelo projeto (Suzuki et al., 2014). Dessa forma, os proprietários ficam com uma parcela menor de sua propriedade ao final do processo, porém com um valor maior por causa das novas infraestruturas e serviços locais. Essas reconfigurações representam também uma oportunidade para, usando parte dos recursos obtidos, melhorar a qualidade dos espaços públicos com a construção de parques, jardins, calçadas, ciclovias e áreas de lazer. Há também a possibilidade de exigir a construção de habitações de interesse social pelos empreendedores em troca do aumento do IAT.
O método LR é aplicado em diversos países, desenvolvidos e subdesenvolvidos, demonstrando que tem caráter de uso geral, capaz de ser aplicado segundo realidades distintas ao redor do mundo. É amplamen- te usado em países do leste da Ásia, como o Japão e as Coreias do Sul e Norte, mas também em muitos outros lugares como, por exemplo, na Alemanha, Índia, Austrália, Espanha, Indonésia, Canadá, Colômbia, Nepal, entre outros (Montandon & Souza, 2007). Um estudo na Índia, no estado de Gujarat, uma revisão de dois projetos executados usando o esquema de LR mostrou que o governo local colhe substanciais benefí- cios financeiros provenientes da venda da terra reserva. Um dos motivos é que ele a retém por um considerável período de tempo antes de vendê- la, o que permite um benefício adicional e significativo proveniente de sua valorização. A habilidade para reter a terra está principalmente na capacidade de o governo não usar as receitas de sua venda para cobrir os custos iniciais do projeto. Estes custos são cobertos por um sistema rotativo de fundos, em que as receitas provenientes de um projeto de LR anterior financiam a infraestrutura de novos projetos, eliminando a necessidade de buscar financiamento externo (Mathur, 2013).
Urban redevelopment (UR), ou redesenvolvimento urbano, é uma outra forma de projeto conjunto. Tipicamente, múltiplos proprietários formam uma associação para consolidar parcelas individuais de terra em um único local de desenvolvimento, ou seja, consolidando propriedades fragmentadas em uma única para ser desenvolvida em conjunto. A terra consolidada é usada então para construir um ou mais prédios altos, com novas vias de acesso e espaços públicos abertos. Por meio deste processo, os proprietários e inquilinos têm o direito de propriedade sobre um imóvel no local com o mesmo valor da propriedade original. A área adicional de construção permitida é vendida para novos proprietários para cobrir parte dos custos das instalações públicas (Suzuki et al., 2014).
As receitas provenientes de desenvolvimentos conjuntos variam significativamente entre projetos, especialmente em países diferentes, seja pelas condições do mercado imobiliário ou pela capacidade da entidade pública de conduzir o processo (Mathur & Smith, 2013). Além disso, para que esses projetos tenham sucesso, o plano diretor precisa proporcionar uma visão de longo prazo e os responsáveis pelas políticas públicas precisam enfatizar a infraestrutura de transporte como a espinha dorsal nas estratégias de desenvolvimento espacial em seus planos, ajudando a guiar o planejamento, a busca por fontes de recursos, a construção e a operação de uma forma que os transportes públicos se tornem sustentáveis (Suzuki et al., 2014). Um LVC bem planejado pode ser uma poderosa ferramenta de financiamento e planejamento para o transporte público e investimentos relacionados ao TOD.
É importante levar em conta, no entanto, que o preço das terras, por sua
natureza, é volátil, modifica-se em resposta a mudanças econômicas e
políticas, que estão além do controle dos governos locais e das companhias
de transporte, então uma variedade de alternativas de fontes de
recursos deve estar disponível, principalmente caso os recursos provenientes
do arranjo LVC fiquem abaixo do esperado (Suzuki et al., 2014)
3. TÓQUIO: UM EXEMPLO
O Japão, país propenso a desastres naturais como terremotos e grandes
inundações, passou os últimos 80 anos dependendo de esforços
para alcançar melhores resultados técnico-tecnológicos e melhores
níveis de desenvolvimento urbano. No decorrer do século passado,
sofreu não apenas grandes desastres naturais, como também a destruição
em grandes proporções de seu território na Segunda Guerra
Mundial. Várias medidas, métodos e planos foram utilizados durante
o processo de reconstrução do país, sendo que muitas dessas medidas
foram institucionalizadas dentro da legislação de planejamento
urbano, particularmente o LR que foi legalmente introduzido pela Lei
de Consolidação do Terreno Agrícola em 1899 e atualizado e aperfeiçoado
pela Lei de LR em 1954 (Montandon & Souza, 2007). O instrumento
é responsável pelo desenvolvimento de mais de 390 mil hectares
no país (Ministry of Land, Infrastructure, Transport and Tourism
- MLITT, 2004, apud Montandon & Souza, 2007).
A base legal do planejamento urbano no Japão está na Lei do Planejamento
Urbano de 1968. Anterior a ela, durante a década de 1960, período
do grande crescimento econômico, houve uma intensa concentração
de população nas áreas urbanas, principalmente nas regiões metropolitanas.
As áreas urbanas expandiram-se de forma desordenada provocando
a formação de áreas com péssima qualidade de urbanização sem
provisão do mínimo necessário de infraestrutura, como vias de acesso e
coleta de esgoto; degradação ambiental e poluição; desequilíbrio das
funções urbanas devido aos congestionamentos resultantes do aumento
do uso de automóveis (Montandon & Souza, 2007).
A sua capital, Tóquio, é a maior metrópole do mundo, centro global de negócios, lazer e cultura da Ásia, em 14 mil km² de conurbação
urbana, com 3.500 km de trilhos e, aproximadamente, 2.000 estações.
A rede ferroviária metropolitana é operada por 48 empresas de
transporte, incluindo o metrô, linhas de trem e monotrilhos que permitem
aos passageiros comutar entre as linhas em terminais integrados,
compartilhando da mesma infraestrutura, usada por múltiplas linhas.
A Lei de Negócios Ferroviários (Railway Business Law) permite às
agências ferroviárias separarem a propriedade das infraestruturas de
operação das linhas de forma a lidar com os crescentes custos e riscos
de novos projetos, estabelecendo um equilíbrio financeiro sobre
múltiplas linhas e melhorando os serviços aos passageiros ao permitir
acesso a múltiplos serviços no mesmo caminho, o que permite a
várias empresas oferecerem um transporte sem costuras pela área
metropolitana (Suzuki et al., 2014). Com essa oferta de transportes
públicos, apenas pouco mais que 10% dos deslocamentos pessoais
na cidade são feitos com o uso do automóvel (Kuwabara, 2013).
3.1. Arranjos de financiamento no modelo japonês
Novos projetos metroferroviários requerem que as agências públicas e
privadas de Tóquio levantem enormes fundos de capital, de várias fontes,
incluindo receitas tarifárias, investimentos públicos, emissão de
títulos e obrigações, subsídios, empréstimos sem juros, dívidas de
longo prazo e LVC. O LR tem sido o mais importante instrumento de
LVC para criar áreas de desenvolvimento vinculadas ao transporte. Tradicionalmente,
entidades de desenvolvimento, incluindo agências de
habitação pública, órgãos públicos e empresas ferroviárias privadas
adquirem terras com baixo preço para desenvolvimento imobiliário, em
que serão oferecidos um conjunto de serviços públicos e novas linhas
do sistema ferroviário. Mas, de acordo com a abordagem de LR, múltiplos
proprietários também podem organizar uma cooperativa e consolidar
um conjunto de terrenos, inicialmente com formatos irregulares,
convertendo-os em parcelas menores, mas com formatos regulares,
infraestrutura urbana, serviços públicos, uso comercial e residencial
dos imóveis e com valores mais altos que as parcelas originais. Vias,
parques, calçadas, estações e outras infraestruturas são financiadas
em parte pela venda da terra (Suzuki et al., 2014).
No land readjustment japonês, todos os proprietários e inquilinos contribuem para o financiamento e a realização do projeto, distribuindo de maneira equilibrada os custos e os benefícios dos resultados. Os projetos são autorizados pelos governos local e nacional, após um acordo entre os proprietários da área do projeto, por meio de uma lei específica de execução elaborada de acordo com os parâmetros estabelecidos pela Lei do LR de 1954. Durante o processo, os terrenos são redimensionados, reposicionados, e as unidades fundiárias passam a ter nova área e formato. Em alguns casos, suas edificações podem até ser realocadas e o direito sobre a propriedade do antigo lote é transferido e convertido ao novo por meio do processo de reconfiguração e do direito de conversão (Montandon & Souza, 2007).
Os projetos de LR propõem uma distribuição equilibrada dos custos e
benefícios. Cada proprietário contribui com uma porção dos seus lotes
ou contrapartida financeira para o desenvolvimento das infraestruturas
urbanas e, por outro lado, os benefícios resultantes do processo de
desenvolvimento também são distribuídos de forma proporcional à
contribuição. Como os proprietários contribuem com parte de sua propriedade,
o novo lote resultante torna-se menor, porém readaptado às
novas funções, e, após a execução do projeto, seu valor é maior do que
antes do processo, por causa da melhoria efetiva de sua utilização e da
proximidade às novas instalações urbanas. Parte da contribuição dos
proprietários é utilizada para a constituição de terrenos reserva, que
podem ser comercializados no mercado com a finalidade de financiar
custos do projeto e de sua execução, ou podem se converter em área
pública para a implantação de infraestrutura urbana, como avenidas,
ruas e parques. A absorção dos benefícios do desenvolvimento é feita
por parte do poder público por meio da constituição de novas áreas
públicas, sem o uso do instrumento de desapropriação, e por parte da
iniciativa privada pela sobrevalorização fundiária após a execução do
projeto. Extensamente aplicado no país, o LR ficou conhecido como a
“mãe” do planejamento urbano no Japão (Montandon & Souza, 2007).
Como essas novas instalações beneficiam não apenas os residentes locais, mas, em muitos casos, têm um alcance regional, os governos podem fornecer subsídios para cobrir os custos iniciais do projeto ou aqueles que não puderem ser pagos por outros mecanismos de financiamento. Esse sistema de subsídio pode servir também para resolver outros tipos de problemas, como, por exemplo, o ressarcimento aos proprietários por possível desvalorização de suas propriedades ou prejuízos causados pelo projeto (Montandon & Souza, 2007).
Já pelo mecanismo de redesenvolvimento urbano (urban redevelopment),
o outro mecanismo de desenvolvimento conjunto, o governo nacional
japonês paga por um terço dos serviços iniciais de pesquisa e preparação
do terreno e por metade da infraestrutura. Normalmente, múltiplos proprietários
estabelecem uma cooperativa para receber subsídios do governo,
consolidar seus terrenos em um local de desenvolvimento e construir
“arranha-céus” e também novas vias de acesso e espaços públicos abertos.
O departamento local de planejamento analisa a proposta de redesenvolvimento,
muda o código de zoneamento e aumenta o máximo IAT. Isso
ocorre normalmente ao redor de estações de transporte público onde o potencial de uso comercial da terra é alto. Por meio desse processo, os
proprietários originais ficam com o direito de receber um imóvel no novo
prédio, que tenha um valor igual à sua propriedade original. Existe também
a possibilidade de um empreendedor pegar todos os direitos de propriedade
dos terrenos para acelerar o projeto de redesenvolvimento. A área
adicional de construção, ou aumento do coeficiente de aproveitamento do
terreno, autorizada pelo governo local, é vendida para cobrir parte dos
custos do projeto. Os instrumentos usados para o desenvolvimento das
terras no Japão são principalmente inclusivos através da construção de
um consenso das partes interessadas (Suzuki et al., 2014).
Nesses últimos anos, por causa dessa composição financeira abrangente,
as corporações metroferroviárias em Tóquio têm cumprido
múltiplos papéis, além da operação do sistema, tais como corretagem
imobiliária e planejamento urbano. As principais empresas de transportes
privadas na área metropolitana têm considerável parcela de
sua receita vinda do mercado imobiliário. A maior delas, Tokyu Corporation,
conhecida internacionalmente por suas práticas de LVC nas
últimas décadas, tem suas receitas líquidas provenientes de diferentes
práticas comerciais: no ano de 2013, o investimento imobiliário
contribuiu com 34% da receita líquida e os serviços de transporte,
incluindo o ferroviário e o sistema de alimentação por ônibus, com
41%. Os outros 25% vêm de serviços de habitação, de comércio e de
lazer (Suzuki et al., 2014) (figura 3), o que indica a importância crescente
de prover múltiplos serviços associados aos investimentos no
metrô (Tokyo metro, n.d.), auxiliando nos custos de longo prazo com
a operação e a manutenção do sistema (Suzuki et al., 2014). Na cidade
de Tóquio, é comum a construção de grandes centros comerciais
no subsolo e sobre a estação do metrô, locais de grande valor comercial,
e exploradas pelas operadoras do sistema.
A rica experiência de Tóquio com a aplicação do LVC em projetos urbanos orientados ao transporte (TOD) nos oferece algumas importantes lições:
– O plano diretor do governo central conduz a um desenvolvimento regional e contém diretrizes para a extensão da rede ferroviária para diferentes entidades públicas e privadas.
– Empresas de transporte precisam ter o direito de longo prazo de manter a posse e a administração de propriedades para gerar receitas para o desenvolvimento e oferta de serviços nas estações.
– Para criar ambientes de alta qualidade próximos à estação, devem ser providos substanciais bônus de densidade. Os empreendedores privados são encorajados a suprir a infraestrutura social e serviços e promover um desenvolvimento urbano inclusivo (Suzuki et al., 2014).
4. LVC NO BRASIL
A legislação brasileira tem instrumentos razoavelmente compatíveis com as técnicas LVC, mas algumas adequações podem facilitar o seu uso. O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257 de 2001) tem entre suas diretrizes (art. 2º) a “recuperação dos investimentos do poder público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos” e a “cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social”. O Estatuto prevê instrumentos (art. 4º) que podem ser usados no financiamento de infraestruturas urbanas, como a contribuição por melhoria, a outorga onerosa do direito de construir, as operações urbanas consorciadas e o consórcio imobiliário (art. 46).
A outorga onerosa do direito de construir (figura 4) significa conceder
ao proprietário do terreno o direito de construir acima do coeficiente
de aproveitamento do terreno, mediante contrapartida a ser prestada
pelo beneficiário. Essa contrapartida pode ser um valor financeiro
obtido por meio da emissão e negociação pelo poder público de certificados
de potencial adicional de construção (Cepac) (art. 34), ou
pode ser em troca de uma parcela do terreno que pode ser usada para
criação de espaços públicos e áreas verdes, implantação de equipamentos
urbanos comunitários, regularização fundiária, execução de
projetos de interesse social entre outros fins previstos no artigo 26.
Operação urbana consorciada (OUC) é o “conjunto de intervenções e
medidas coordenadas pelo poder público municipal, com a participação
dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores
privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações
urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental”
(art. 32). Por meio dela, é possível remanejar o parcelamento, uso e ocupação do solo e subsolo, também mediante contrapartida dos
proprietários, usuários e investidores, em função da valorização da
terra. Em projetos greenfield, os investidores privados podem pagar
para obter os direitos de propriedade, o que facilita sua execução.
OUC se assemelha às operações de land readjustment.
O Estatuto da Cidade define ainda o consórcio imobiliário como a “forma de viabilização de planos de urbanização ou edificação por meio da qual o proprietário transfere ao poder público municipal seu imóvel e, após a realização das obras, recebe, como pagamento, unidades imobiliárias devidamente urbanizadas ou edificadas” (art. 46, § 1º). Trata-se, porém, de um instrumento que merece uma revisão legal. Em um trabalho feito pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado Federal, Pinto (2013) faz duas observações importantes a respeito das limitações impostas ao uso do consórcio imobiliário. A primeira é que o Estatuto prevê que “o valor das unidades imobiliárias a serem entregues ao proprietário será correspondente ao valor do imóvel antes da execução das obras” (art. 46, § 2º), mas não se deve limitar esse valor ao valor do imóvel original. Ao contrário, ao permitir que os proprietários também se beneficiem de parte da valorização trazida pelo empreendimento, eles podem se sentir incentivados a entregar sua propriedade por vontade própria ao empreendedor, dispensando o uso da desapropriação. A segunda é que o Estatuto restringiu o consórcio imobiliário a imóveis submetidos ao regime de parcelamento ou edificação compulsórios (art. 46, caput), caracterizados pela Constituição de 1988 (art. 182, § 4º, I) como não edificados, subutilizados ou não utilizados, em que subutilizado foi definido no Estatuto da Cidade como o imóvel “cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano diretor ou em legislação dele decorrente” (art. 5º). Trata-se de um universo muito restrito de imóveis, que são tratados individualmente, quando o reparcelamento se faz em um conjunto de imóveis contíguos que podem, inclusive, estar edificados e em pleno uso. Para ampliar, portanto, a sua utilização é preciso alargar o conceito de solo urbano subutilizado, podendo-se adotar a definição proposta por Pinto (2013) “O solo urbano é subutilizado quando não cumpre sua finalidade, que é servir de suporte para edificações e atividades compatíveis com as densidades para as quais as infraestruturas urbanas foram projetadas”.
Há ainda duas outras limitações importantes para a aplicação do instituto do reparcelamento, ou land readjustment, no Brasil. Conforme verifica Pinto, também para os casos de desapropriação, o poder público não pode pagar pelo imóvel valor superior ao de mercado, o que, se fosse possível, tornaria este instrumento mais fácil e mais rápido, pois muitos proprietários poderiam aderir voluntariamente ao reparcelamento. Essa restrição, no entanto, pode ser superada na hipótese de execução do reparcelamento por uma empresa concessionária de serviço e obra ou apenas de obra pública, pois, sendo ela uma empresa privada, pode exercer o princípio da livre negociação entre as partes, dispondo de uma liberdade ampla na negociação com os proprietários de imóveis, inexistente no caso da administração direta ou indireta. A outra limitação é que a Constituição (art. 182, § 3º) exige que a desapropriação seja indenizada previamente e em dinheiro, exceto nos casos de reforma agrária e de reforma urbana, nos quais a indenização ocorre em títulos da dívida pública e não admite, portanto, a troca do imóvel desapropriado por outro, nem sua entrega após a imissão na posse pelo poder público. Assim sendo, a substituição de um imóvel por outro ou por alguma forma de participação no empreendimento só pode ser obtida com a concordância do proprietário (2013).
O projeto Porto Maravilha no Rio de Janeiro é um exemplo de aplicação da nossa regulamentação. Trata-se da requalificação de 5 km² na área portuária, no centro da cidade, em um bairro de uso misto, com prédios residenciais e comerciais, escolas, hospitais, hotéis, museus, órgãos públicos e outros. A área é circundada por 28 km de um veículo leve sobre trilhos – VLT integrado a outros meios de transporte como o aeroporto Santos Dumont, as barcas, trens urbanos, metrô, ônibus e BRT. Contempla ainda um teleférico sobre o morro da Providência, 17 km de ciclovia e algumas novas calçadas para pedestres. A Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro – CDURP, empresa pública municipal criada para este fim (Lei Complementar Estadual nº 102, de 2009), conduziu o processo de venda de certificados de potencial adicional de construção, que trouxeram os recursos financeiros da iniciativa privada para a execução das obras de requalificação urbana e as infraestruturas complementares como as obras de drenagem, água, esgoto, transmissão elétrica e gás.
5. CONCLUSÃO
Os custos para a implantação do metrô são muito elevados e, em
geral, representam um grande peso para os municípios brasileiros,
mesmo com o apoio financeiro do governo federal a alguns empreendimentos.
Por outro lado, sua implantação gera riqueza, que se
mostra pela valorização dos imóveis nas proximidades das estações
de embarque e desembarque, especialmente quando associada ao
desenvolvimento das áreas urbanas orientado ao transporte – TOD,
com a implantação de bairros de uso misto favoráveis e convidativos
aos pedestres. A captura de parte dessa valorização, seja por meio
de taxações ou pelo negócio imobiliário com os próprios terrenos,
pode representar uma importante fonte alternativa de financiamento,
além das formas tradicionais, para cobrir ou recuperar os custos da
operação e manutenção do sistema e das infraestruturas necessá-
rias, não apenas do metrô, mas também das áreas urbanas adjacentes.
Em outras palavras, o metrô pode financiar a si próprio e ainda
propiciar um planejamento urbano em dimensões regionais, de
forma que os pontos principais de atração e geração de viagens
fiquem próximos ao acesso ao transporte coletivo, diminuindo o
tempo dos deslocamentos por meio do transporte público, reduzindo
a dependência do automóvel e aumentando o número de passageiros
do transporte coletivo em função da densidade e posição dos
polos de atração e geração de viagens próximos ao acesso ao
metrô, aumentando as receitas tarifárias. A experiência japonesa,
particularmente em Tóquio, país que enfrentou grandes problemas
urbanos em décadas recentes e hoje tem um dos melhores transportes
públicos do mundo, demonstra que é possível criar sistemas
metroviários economicamente sustentáveis.
(artigo publicado na Revista de Transportes Públicos da ANTP, nº 146. Versão em PDF para download aqui)
AUTORES
Geraldo Freire Garcia - Mestrando em Planejamento Urbano. Bacharel em Engenharia Civil pela Universidade de Brasília – UnB. Servidor público federal na carreira de especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental trabalhando atualmente na Secretaria Nacional de Transporte e da Mobilidade Urbana do Ministério das Cidades.
Carlos Henrique Rocha - PhD em Economia pela Universidade de Liverpool. Professor de Economia dos Transportes no Programa de Pós-Graduação em Transportes. Departamento de Engenharia Civil - Universidade de Brasília – UnB. Pesquisador na área de economia e financiamento dos transportes.
Jéssica Mendes Jorge - Graduanda em Engenharia de Produção pela Universidade de Brasília.
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