Gesto da mãozinha: sinalização da sinalização e o avesso do avesso do avesso

13/11/2016 16:00 - Meli Malatesta


Nunca entendi porque uma minoria de motoristas infratores é tão paparicada.  Estes, ao colocarem seus interesses pessoais acima dos demais ao cometerem sistematicamente suas infrações, se indignam com “guarda escondido atrás do poste”, “radar pegadinha”, “indústria da multa”.  Assim são criados mitos, comprados pelos maldosamente interessados e por pobres ingênuos prejudicados pelo comportamento egoísta e arriscado dessa turma.

Sempre morri de vergonha em ver nas nossas vias e estradas sinalização advertindo sobre a existência de radar, certamente dirigida a esse tipo de condutor.  Certa vez, um amigo que está há anos fora do Brasil e retornou, me perguntou porque elas existiam e, meio sem jeito, respondi que era obrigatório pelas nossas leis de trânsito.  Ele continuou insistindo sem entender o porquê, já que a presença da sinalização faz com que o radar perca seu efeito, e a velocidade só seja reduzida onde ele está: é só constatar pelas marcas de pneus nos locais onde existe. Soube agora que a obrigatoriedade da presença delas caiu, ainda bem.  É um primeiro passo. O próximo será tornar proibida a existência destas placas e providenciar sua retirada.

O mesmo ocorre com essa novidade que inventaram, o “gesto do pedestre”.  Ele foi criado para a emblemática campanha “Paz no Trânsito” de Brasília, ocorrida há 20 anos atrás.  Ela tinha por objetivo reduzir as mortes no trânsito causadas pelo desrespeito de motoristas às faixas de pedestre, obrigando o pedestre a gesticular para mostrar ao motorista que ele não estava à toa junto à faixa do pedestre. Portanto, servia para sinalizar a sinalização, aplicando-se assim a mesma lógica bizarra de paparicar motorista potencialmente infrator, ao invés de penalizá-lo com fiscalização como instituído pela lei.  Além disso submetia o mais prejudicado pela situação a ter mais uma obrigação, e comprometia a própria existência e a eficácia da sinalização faixa de pedestre.  Maluco, não?

Como ele funcionou, pelo menos por um tempo, foi readotado pelo Programa de Proteção ao Pedestre da CET de São Paulo ocorrido entre 2011 e 2012. O programa conseguiu reduzir atropelamentos, mas certamente não era só decorrência do gesto da mãozinha.  Em 2014 a CET implantou o Programa de Proteção à Vida, e que consistiu em baixar os níveis de velocidade intensificando a fiscalização. Não era um programa dirigido especificamente à Mobilidade a Pé, mas sim a todos os usuários da via e se mostrou um programa eficaz.  É só constatar no histórico das mortes no trânsito do Relatório de Acidentes da CET:

Evolução anual do número de mortos no trânsito de São Paulo – página 30 do Relatório Anual de Acidentes de Trânsito – 2015,  CET SP

O número de pedestres mortos entre 2011 e 2013, época de duração do Programa de Proteção ao Pedestre, caiu de 617 para 540 no primeiro ano (cerca de 12,4% mortes a menos), e de 540 para 514 (cerca de 5% mortes a menos) no segundo. 

Os atropelamentos tornaram a subir com o término do Programa de Proteção ao Pedestre entre 2013 e 2014, de 514 para 555 (cerca de 8% de mortes a mais). Em seguida tiveram uma significativa queda de 555 para 419 (25% de mortes a menos) entre 2014 e 2015, época da implantação do Programa de Proteção à Vida, com a redução de velocidade e fiscalização intensiva.  É claro que há outras variáveis envolvidas, mas, mesmo assim, ao se comparar os porcentuais de redução de óbitos, fica evidente que ações envolvendo controle de comportamento do infrator se mostram mais eficazes em relação às ações que envolvem sobreposição de sinalização.

Agora com a gestão a ser iniciada no próximo ano, novamente querem trazer o Programa de Proteção ao Pedestre com o gesto da mãozinha e ao mesmo tempo rever o Programa de Proteção à Vida com a retomada dos padrões de velocidade para valores maiores em alguns locais da cidade. 

Assim volta a lógica maluca e perversa da “SINALIZAÇÃO DA SINALIZAÇÃO”, o “avesso do avesso do avesso” criado pelo poeta para definir Sampa.  Ele compromete o código de comportamentos coletivos seguros e cidadãos instituídos pela legislação de trânsito e sinalização viária e o que é mais complicado:  os destinados a quem está em maior situação de vulnerabilidade, todos nós, pedestres.

Meli Malatesta (Maria Ermelina Brosch Malatesta) - Arquiteta pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestrado em Transporte a Pé na FAUUSP e doutorado em Transporte Cicloviário pela FAUUSP; presidente da Comissão Técnica Mobilidade a Pé e Mobilidade da ANTP