Intercâmbios no espaço público: visita técnica na superquadra piloto de Barcelona

23/01/2017 16:00 - Irene Quintáns


Irene Quintáns

No presente mês, janeiro de 2017, Irene Quintáns visitou a Superquadra piloto localizada no bairro de Poblenou (Barcelona), para conhecer o local e conversar, em entrevista exclusiva, com Sílvia Casorrán, técnica de mobilidade residente da Superquadra. O programa das Superquadras vem sendo amplamente divulgado nas midias internacionais.

Salvador Rueda [1], diretor da Agència d’Ecologia Urbana de Barcelona desde o ano 2000 e idealizador do conceito das Superquadras (Superilles em catalão, Supermanzanas em espanhol, Superblocks em inglês), traz uma reflexão de como poderia ter sido a cidade de Barcelona com a implantação do plano de extensão da cidade desenhado pelo genial urbanista Ildefons Cerdà.

Mas...quem era? Ildefonso Cerdà (1815 - 1876) foi o indiscutível criador e sistematizador da disciplina Urbanística, e com ele, pela primeira vez, foram  identificados seus fundamentos científicos e se iniciou o longo desenvolvimento deste moderno e amplo  campo de conhecimento. E isto Cerdà fez de forma inovadora, mediante a integração metodológica ao Urbanismo (técnica aplicado da Urbanística) do Direito Público e da Economia, campos inseparavelmente entrelaçados enquanto disciplinas estruturadoras do design físico e espacial dos projetos ou planos [2].

Depois de participar em uma comissão de direitos da Associação Operária, Cerdà elaborou a Monografia da classe operária de 1856. Com a experiência do Anteprojeto de Expansão de Barcelona (1855) e esta Monografia, Cerdà recolheu material de experiências de cidades operárias que apresentaria posteriormente no Atlas Teoria da construção das cidadesonde aplica suas teorias na cidade de Barcelona (Teoría de la construcción de las ciudades aplicada al proyecto de reforma y ensanche de Barcelona, 1859) [3] . Finalmente, publica em 1867 sua grande obra, Teoría General de la Urbanización. 

Desde a perspectiva da urbanização, Cerdà entendeu claramente que a transformação do solo se vinculava intimamente aos novos agentes urbanos de infraestruturas de serviços urbanos e de transporte [3]. Ademais, nota que a construção da cidade como totalidade (­e não como soma de peças arquitetônicas ou de engenharias isoladas)­ requer abordar outras disciplinas que a expliquem melhor, a si e a seus "hieróglifos labirínticos", sua higiene e seus males sociais profundos [4].

Em seu ineditismo, Cerdà considerava em seu projeto para Barcelona a moradia como fator basilar para a qualidade de vida. Na criação de uma nova cidade ele se preocupava com a salubridade das habitações. Dos seus estudos estatísticos conclui que a localização exata da moradia, rua, andar, orientação, tinham relação direta com a qualidade de vida e saúde do morador. A casa para Cerdà era o princípio de tudo: a privacidade, as condições dignas de vida, sol, vento, ar, luz natural, eram aspectos que deveriam estar presentes, e a um custo adaptável para a classe operária. Em sua “Teoria Geral da Urbanização” fica explícita a presença dos dois conceitos diretores: a “habitação” e a “circulação”, polos operacionais do urbanismo presentes no plano de Barcelona, no projeto cuidadoso de   uma rua racional, com 20m de largura e separação equitativa entre os meios de locomoção (5m de calçada – 10 m de rua – 5m de calçada).


Na hora de projetar a extensão da cidade, e buscando a equidade de qualidade de vida para todos os cidadãos, sem distinção de classe social, Cerdà propõe uma trama homogênea dotada de todos os equipamentos necessários para a vida urbana, distribuídos igualitariamente nos diferentes distritos. Inclusive a orientação das quadras e seus conhecidos “chanfros” têm como justificativa a máxima captação de luz solar ao longo do dia, sendo seus vértices coincidentes com os pontos cardinais.

Mas, infelizmente, a avidez dos construtores da cidade fez desaparecer grande parte do verde urbano e dos espaços livres projetados por Cerdà nesta trama equitativa e homogênea. As quadras foram fechadas e adensadas.

Ao lado: ilustração sobre o Plano original do Cerdà [5] – Ilustração do livro para crianças “A pequena história dE Ildefons Cerdà” [6]  – Gráfico com o aumento do potencial de edificação da quadra original projetada por  Cerdá até as quadras construídas na cidade [7].


Após quase 150 anos desde a origem do plano de extensão da cidade, a prefeitura de Barcelona aprovou um primeiro instrumento que resgataria alguns desses espaços projetados por Cerdà, na busca de uma maior qualidade de vida na densa trama urbana. No ano 2000 foi aprovado um decreto para liberar parte dos miolos de quadra da cidade, onde seriam construídos jardins, playgrounds, espaços de descanso e lazer e outros equipamentos [8].

Ainda na suposição de que fossem liberados 1.500 m² do interior de cada quadra, sendo que suas dimensões são 400 m x 400 m, a superfície verde ocuparia um espaço de 13.500 m², o equivalente a 24% do verde programado por Cerdà para um espaço semelhante, comenta Salvador Rueda.

O plano das superquadras (500 no total) [9] abrange este aspecto do espaço livre, mas também outros. A superquadra é uma célula urbana composta por nove quadras: libera espaço para o lazer e a convivência dos cidadãos (em cada superquadra há quatro praças públicas); integra todas as redes urbanas sem comprometer a mobilidade (a alteração que foi feita, basicamente, é estabelecer que os carros não podem seguir direto em nenhum dos cruzamentos, sempre têm que fazer uma curva e em seguida um ‘loop’ para acessar a rua seguinte; com isso, você evita a passagem do tráfego e, assim, entram apenas moradores, comerciantes ou aqueles que vieram fazer alguma coisa aqui); reduz os poluentes com a diminuição do trânsito. Tudo isso permitirá alcançar as metas do Plano de Mobilidade Urbana  de Barcelona (2013-18) [10].  

A proposta das superquadras é adaptável a outras tramas urbanas. Esta adaptabilidade resgata a ideia de Cerdà de “cidade equitativa”: todos os bairros devem ter o mesmo patamar de qualidade urbana, sem dar mais privilégios a algumas áreas.

Esta adaptabilidade teórica (proposta por Cerdà) e o correspondente modelo de mobilidade urbana fez com que numerosas cidades mostrassem interesse pelas diretrizes para seu desenvolvimento (atualmente Barcelona recebeu mostras de interesse de cidades da Índia, Coreia do Sul, Canadá, EUA, Equador, Argentina, México, cidades espanholas e europeias, e até mesmo de Moscou).

Em entrevista exclusiva com Sílvia Casorrán, técnica de mobilidade residente da Superquadra piloto no bairro Poblenou, ela comenta que “nós, cidadãos, não estamos acostumados; é muito difícil para as pessoas, para os cidadãos, pensar que esse espaço que antes era para carros, agora é nosso. O fato de nos apropriarmos do espaço público, que no final é o asfalto, é custoso. Nos custa pensar que agora podemos estar aqui em segurança no meio de um cruzamento onde antes passavam os carros.”. 

Video da entrevista com Sílvia Casorrán (6 de janeiro de 2017) disponível também com legendas em espanhol (https://youtu.be/yvWN5Tnq-YQ) e inglês (english version)(https://youtu.be/GRPzv1H0yRw). 

Edição do Paulo Bogo (Canal MOVA-SE) em parceria com a ANTP; colaboração de Alexandre Pelegi. 

Ainda sendo uma proposta aplaudida no mundo inteiro, os próprios moradores da região têm opiniões diversas. No fim das contas, tirar privilégios do carro não é bem aceito em nenhuma cidade nas primeiras fases dos projetos.

“Nós temos nos organizado de forma autônoma. Surgiu uma plataforma de oposição à superquadra, que são pessoas que em sua maioria não vivem aqui, nem sequer no perímetro, mas sim próximo, e que agora viram seu caminho para chegar até o estacionamento ficar um pouco mais distante; então há um clamor, porque incomoda muito a eles dar um pouco mais de voltas para chegar ao local onde estacionam seus carros. E em seguida a isso - em sua maioria moradores de dentro da superquadra (mas também alguns de fora) – nós temos nos mobilizado a favor, porque quando vimos que eles estavam se mobilizando contra (o NÃO sempre mobiliza mais!), nós do SIM nos fomos conhecendo pouco a pouco, e agora, de fato, somos uma grande comunidade de moradores da superquadra, e nos sentimos como uma nova ‘nacionalidade superquadra’. ... Nos organizamos em um coletivo que se chama Coletivo Superquadra Poblenou e temos feito alguns vídeos para defender a superquadra, para explicar as mentiras que se contam….porque os moradores “ANTI” diziam que as ambulâncias não chegavam, que há muita insegurança na rua – porque agora passam menos carros -, diziam… bom, esse tipo de coisas que são mentiras, por isso temos saído a campo para contraditar estas opiniões.”

Seguem algumas imagens da Superquadra (Fotos de Irene Quintáns). A intervenção atual na quadra piloto é feita com elementos de urbanismo tático (tinta, vasos, bancos). Alguns mobiliários urbanos fixos já foram instalados e nos próximos meses a quadra será reurbanizada com elementos duráveis.   

ENTRADA SUPERQUADRA

RUAS INTERNAS

PRAÇAS – CRUZAMENTOS INTERNOS SUPERQUADRAS

A ocupação do espaço público é um tema que, cada dia mais, parece ser uma das fórmulas básicas para se conseguir uma cidade com mais igualdade, interessante e socialmente equitativa. Porém, o plano das Superquadras de Barcelona conseguiu sair na frente principalmente pela viabilidade que traria ao total de compromissos adquiridos pela municipalidade em seu Plano de Mobilidade Urbana.

O objetivo do Plano de Mobilidade Urbana de Barcelona (PMU 2013-2018) é continuar atuando sobre o espaço público e a mobilidade para promover a convivência entre as pessoas, a coesão social, o bem-estar e a saúde pública. Por esta razão, o modelo de mobilidade de Barcelona se fundamenta sobre uma base de quatro eixos estratégicos.

Eixo 1 - Um modelo seguro: mais segurança viária, mais pacificação do trânsito e um Plano Local de Segurança Viária (PLSV) 2013-2018 como documento diferenciado, onde se faz um diagnóstico exaustivo da acidentalidade e se planeja um conjunto de medidas concretas com as quais se pretende alcançar uma redução de 30% no número de mortes, de acordo com o objetivo da União Europeia de reduzi-las em 50% em 2020 em relação a 2010; redução de 20% do número de feridos graves, em sintonia com o objetivo de alcançar uma diminuição de 30% em 2020 em relação a 2010. 

Interessante observar pela tabela abaixo que as medidas de Segurança viária entram em um cenário onde o número de mortos em ocorrências de trânsito (dado de 2015) foi de 27 mortes para 1,5 milhões de habitantes da cidade (nesse mesmo ano, na capital São Paulo, morreram 992 pessoas no trânsito para 12 milhões de habitantes, segundo dados da CET, o que representa um índice 5 vezes maior). [11] 

Eixo 2 – um modelo sustentável: mais mobilidade a pé, de bicicleta e por transporte público, mais qualidade ambiental, menos emissões de poluentes e ruídos (em cumprimento aos parâmetros de qualidade do ar da União Europeia)

Eixo 3 – um modelo equitativo: mais acessibilidade ao sistema de mobilidade, maior integração e coesão social e mais espaço para pedestres e ciclistas.

Eixo 4 - um modelo eficiente: mais eficiência dos sistemas de transporte, mais novas tecnologias de gestão da mobilidade, maior distribuição ordenada das mercadorias, menos ineficiência e custos econômicos.

 

O Programa de medidas contra a poluição do ar de Barcelona (2016-20), fundamentado em diferentes planos e programas, mas especialmente no PMU 2013-2018, traz várias medidas estruturantes, sendo a principal, na trama urbana, a mudança no modelo de cidade: impulso ao transporte público, plano de bicicletas, pacificação do trânsito de alguns bairros e plano das Superquadras como medidas de governo: “Enchendo de vida as ruas. Implementação das superquadras em Barcelona (2017-19)”.

Qualidade de vida, saúde, redução da poluição, conforto sonoro, espaços públicos. Tudo passa pela redistribuição dos espaços da cidade, acompanhado de outras medidas e compromissos através das políticas públicas; e as superquadras são um exemplo exportável. No fim das contas são poucas as cidades que não têm esta necessidade, mas dentre as muitas que têm, quantas terão a coragem de enfrentá-la?

(na imagem, “banco para #intercâmbio” no cruzamento de ruas, espaço retomado dos carros)

Notas

[1] Entrevista de 324.cat a Salvador Rueda – 15 de janeiro de 2017. Disponível em http://www.ccma.cat/324/salvador-rueda-sobre-el-pla-de-les-superilles-el-nombre-esta-al-voltant-de-les-500/noticia/2768000/

[2] GARCÍA-BELLIDO, Javier. Ildefonso cerdà y el nacimiento de la urbanística: la primera propuesta disciplinar de su estructura profunda. Scripta Nova.  Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de abril de 2000, núm 61. Disponível em: http://www.ub.edu/geocrit/sn-61.htm

[3] MAGRINYÀ, Francesc. El ensanche y la reforma de Ildefons Cerdà como instrumento urbanístico de referencia en la modernización urbana de Barcelona. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2009, vol. XIII, núm. 296. Disponível em http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-296/sn-296-3.htm 

[4] GARCÍA-BELLIDO, Javier. Opus cit.

[5]  Cuadernos de Arquitectura y Urbanismo, n.101, Barcelona (1974)

[6] LUNA, Gonçal. Petita história d Ildefons Cerdà. Ilustrações Pilarín Bayés. Barcelona, 2009

[7] Arquivo de Proeixample (Ajuntament de Barcelona). Montagem de Irene Quintáns.

[8] Fotos antes-depois: arquivo ProEixample (Ajuntament de Barcelona). Elaboração dos mapas e cortes correspondentes ao Decreto por Irene Quintáns para ProEixample (Ajuntament de Barcelona).

Imagem do interior dos Jardins de Laura Albéniz (Foto Irene Quintáns)

[9] Imagens da Agència d’Ecologia Urbana de Barcelona.

[10]  Pla de Mobilitat Urbana de Barcelona (2013-18). Disponível em: http://mobilitat.ajuntament.barcelona.cat/ca/documentacio?field_tipologia_documentacion_tid=11

[11]  Gráficos de El periódico.com. Disponível em: http://www.elperiodico.com/es/graficos/barcelona/accidentes-trafico-muertos-barcelona-2015-13890/


Irene Quintáns é arquiteta urbanista com pós-graduação em Estudos Territoriais, Políticas Sociais, Mobilidade, Habitação e Gestão Urbanística. Fundadora e diretora da Rede OCARA, rede latino-americana de experiências e projetos sobre cidade, arte, arquitetura, mobilidade urbana e espaço público nos quais participam crianças. Vice-presidenta da IPA Brasil, Associação Brasileira pelo Direito de Brincar e à Cultura. Edita o Blog Passos e Espaços, no site Mobilize. 

OCARA urbana é novo site, escrito e mantido por Irene, onde ela irá relatar sua participação em experiências e projetos que visam transformar para melhor as relações da cidade com seus habitantes sob variados ângulos e perspectivas, em especial projetos que miram uma relação amigável entre criança e cidade. O vídeo da Superquadra é o primeiro material produzido por OCARA urbana, em parceria com o canal MOVA-SE e a ANTP - Associação Nacional de Transportes Públicos.