O problema dos veículos em fim de vida

12/05/2016 09:35 - Flávio André de Castro Braga

Ensaio Crítico apresentado no Curso de Gestão da Mobilidade Urbana da ANTP



RESUMO

Este artigo tem objetivo fazer algumas reflexões sobre os problemas causados por veículos em fim de vida, cujas sucatas muitas vezes causam desconforto para a comunidade e degradam o meio ambiente. Pretende-se fazer uma análise do inconveniente que representam essas sucatas, das legislações envolvidas no processo e das possíveis soluções. Para tanto, realizou-se pesquisa bibliográfica para a qual contribuíram obras de autores como Martins (2011), Mildemberger (2012) e Rosa (2009), buscando-se compreender a problemática em toda sua profundidade e assim buscar soluções. Concluiu-se que há legislação regulando o tema, embora haja espaço para criação de leis mais específicas; de toda forma, deve-se empenhar para que os governantes e autoridades responsáveis disponham-se a tomar atitudes políticas para a solução do problema.


Introdução

Este estudo apresenta como tema o problema dos veículos em fim de vida que se tornam sucatas abandonadas em vias públicas ou em ferros-velhos e pátios de recolhimento de veículos de órgãos de trânsito, causando transtornos ao meio ambiente e à população.

Dessa forma, foram formuladas as seguintes questões que orientaram este trabalho:

·         Os veículos em fim de vida constituem problema considerável para as cidades?

·         Há legislação que discipline a matéria?

·         Que ações podem ser desenvolvidas para mitigar o problema?

A invenção do automóvel constituiu um grande avanço nos meios de locomoção; entretanto, sua elevada produção causa o problema do manejo desses veículos quando do fim de sua vida útil. Ficam depositados em vias públicas ou em determinados terrenos particulares ou públicos, gerando transtornos diversos e minorando a qualidade de vida da população.         

A forma pela qual se tem tratado a questão representa um descuido com o bem-estar da comunidade, com o meio ambiente e mesmo com a economia, já que são riquezas que estão se perdendo quando poderia haver ganhos econômicos mediante a reciclagem desse material. Segundo Martins (2011): 

O ferro e o aço na forma de sucata de automóveis são utilizados pelas siderúrgicas, na transformação de novas chapas de aço. A grande vantagem desse processo é que a sucata demora somente um dia para ser processada e transformada novamente em lâminas de aço, as quais podem ser usadas por diversos sectores industriais – das indústrias de montagem de automóveis às fábricas de latas – e a possibilidade do material ser reciclado infinitas vezes, sem causar grandes perdas ou prejudicar sua qualidade (MARTINS, 2011, p.47).


Assim, o objetivo deste estudo é investigar a problemática dos veículos em fim de vida, assim como legislações existentes sobre o assunto e possíveis soluções que se pode adotar.

O recurso metodológico de que se fez uso foi a pesquisa bibliográfica, por meio de estudo detalhado de trabalhos já publicados sobre o assunto e de material científico divulgado no meio eletrônico.

A fundamentação teórica para este trabalho se deu com base em obras de autores como Martins (2011), Mildemberger (2012) e Rosa (2009). 

Desenvolvimento

A evolução do automóvel em nível industrial representou acentuada inflexão no modo de vida da humanidade. Desde seu invento, passando pela revolução com o estabelecimento da produção em série na linha de montagem por Henry Ford no início do século XX, e até os dias atuais, a evolução do uso de veículos foi marcante em todo o mundo. No Brasil, por exemplo, as vendas de carros “em 2011 [...] de 1,35 milhão de unidades, superaram as de importantes mercados da Europa, como França (1,2 milhão), Rússia (989 mil), Grã-Bretanha (956,9 mil) e Itália (928,2 mil).” (MARTINS, 2011, p. 41). 

Entretanto, uma quantidade tão grande de veículos criados pela produção em massa gera resíduos cuja disposição tem se tornado um delicado problema urbano. Trata-se dos automóveis em fim de vida, chamados, às vezes, de carcaças de veículos ou de sucatas, comuns nas paisagens das cidades brasileiras, não havendo uma gestão apropriada no que se refere ao seu manuseio. Assim, grande parte desse material permanece muito tempo depositado em locais indevidos, trazendo transtornos para a população e para o meio ambiente.

Em muitos casos, esses veículos ficam abandonados nas ruas, degradando a paisagem, contribuindo para a elevação do acúmulo de lixo e até servindo de guarida para mendigos e marginais, como usuários de drogas. Também é comum essas carcaças ficarem expostas ao sol e à chuva nos chamados ferros-velhos, onde a situação não é menos degradante ao meio ambiente ou ao bem estar da comunidade. O pior de tudo é que quando são depositados em pátios de recolhimento de veículos de órgãos de trânsito, como os Detrans, o cenário não é diferente. De acordo com  Mildemberger,

[...] veículos sinistrados [...] ficam armazenados nos pátios da Polícia Rodoviária e DETRANs e em ferros-velhos onde podem acumular água. Tais locais são reconhecidos potenciais criadouros do mosquito Aedes Aegypti transmissor da Dengue, doença que pode causar grande debilidade física podendo até levar à morte. Por isso, esses locais já são considerados como áreas prioritárias para execução de atividades de controle e também de monitoramento [...] Outro risco importante [...] é a contaminação do solo e da água. No estudo sobre contaminação de aquíferos por derramamento de gasolina e álcool [...] é apresentado que em caso de derramamento de gasolina brasileira com etanol, o mesmo vai aumentar a solubilização dos hidrocarbonetos na água subterrânea [...] (MILDEMBERGER, 2012, p. 22).


Quanto à legislação que discipline o assunto, Segundo Martins (2011), em estados brasileiros como o Rio de Janeiro,

Quando o veículo chega ao fim de sua vida útil por qualquer motivo o proprietário é obrigado a dar baixa do veículo, que consiste no processo de exclusão da Base de Dados do DETRAN-RJ e da Base Índice Nacional (BIN) do Registro Nacional de Veículos Automotores (RENAVAM) do registro de um veículo retirado de circulação nas seguintes situações: irrecuperável, definitivamente desmontado, sinistrado com laudo de perda total e vendido ou leiloado como sucata. (MARTINS, 2011, p. 47).

Essa norma, entretanto, não se traduz na retirada das sucatas das ruas. O Rio de Janeiro é um dos estados que mais apresentam problemas com automóveis abandonados nas vias, tendo sido feito decreto pelas autoridades estaduais, ordenando o recolhimento desses veículos. Esse procedimento também não foi suficiente para o recolhimento dessas carcaças das vias públicas. Da mesma forma, abundam normas sobre o tema em todos os estados do país, sem que se solucione o problema.

É necessário, pois, acentuar a fiscalização, não apenas por ênfase na legislação É ainda importante estudar meios de se mudar o foco da solução do problema, tomando-se por exemplo outros países. Mildemberger (2012) assevera que “a base da legislação europeia para VFV [veículos em fim de vida] é o princípio da responsabilidade do produtor pelo fim de vida do produto.” Para Rosa (2009), na União Europeia foi estabelecida a responsabilização do produtor:

A Responsabilidade Alargada do Produtor ou Extended Product Responsibility [EPR] é uma estratégia/princípio de política ambiental introduzida no início da década de 90 [...] Nela, o produtor é responsabilizado pelo ciclo de vida dos seus produtos, tendo por objetivo minorar os impactos que esses provocam no meio ambiente. Por outras palavras, com a EPR a responsabilidade de gestão dos resíduos é transferida da visão tradicional do problema, que encarrega especialmente as autoridades administrativas e os consumidores, para uma perspectiva mais integrada em que os produtores desempenham o papel principal. Esta responsabilidade não se limita ao processo produtivo [...] A EPR estende-se a todas as fases do ciclo de vida de um produto, tentando internalizar todos os custos ambientais e externalidades que um produto tem ao longo da sua vida [...] (ROSA, 2009, p.19).


Com base nessas informações, depreende-se que, no Brasil, pode-se estimular os produtores automotivos a promoverem a retirada de veículos das ruas, não apenas por meio de legislação específica, mas principalmente mediante incentivos. Esse mesmo método pode servir também para os proprietários das carcaças colaborarem com a sua retirada das ruas. Sabe-se que nessas sucatas há material reciclável. Sugere-se que o governo dê incentivos ao proprietário e ao produtor, e parte dos fundos utilizados para compensar financeiramente o projeto pode ser proveniente do próprio aproveitamento dos resíduos reciclados dos veículos em fim de vida.

O estímulo à retirada dessas carcaças poderia vir também diretamente dos representantes das autoridades de trânsito. Um bom exemplo do que se pode fazer nesse sentido é fornecido pela prefeitura da cidade paulista de Monte Alto, onde uma lei obrigou os donos de carros abandonados na rua a recolher o veículo para evitar o pagamento de uma multa de alto valor. “O fiscal de trânsito e os guardas civis identificam o carro abandonado, fotografam e colam adesivos. É um aviso: se o dono não tomar providências em 15 dias, o veículo é recolhido.” Os valores arrecadados com essas multas e com a reciclagem dos resíduos podem ajudar a financiar outros programas de incentivo, como os já mencionados.

Esse fomento poderia também abarcar proprietários de ferros-velhos. Mediante incentivos pecuniários ou fiscais, tais empresários ficariam dispostos a transferirem os resíduos inservíveis para a reciclagem o quanto antes, desafogando o meio ambiente. Um acordo com esses proprietários poderia incluir também o compromisso em se manter os demais materiais mantidos nos ferros-velhos num estado em que menos degradassem o meio ambiente, a saúde pública e a paisagem, inserindo-se, por exemplo, coberturas nesses estabelecimentos.

A solução do problema em pátios de recolhimento de veículos pode requerer solução no mesmo sentido. O governo federal proporcionaria aos estados da federação incentivos similares se metas preestabelecidas de conservação dos pátios fossem cumpridas. Esse poderia ser o recurso para amenizar a situação dos veículos nesses ambientes, enquanto a burocracia e outros entraves à retirada dos carros permitam que eles permaneçam nesses locais.

Pode-se perceber que há inumeráveis possibilidades de solucionar o problema, do que se deduz que parece haver falta de vontade política e de responsabilidade ambiental e social por parte das autoridades responsáveis. Os prejuízos ao meio ambiente e à coletividade são evidentes, haja vista os inumeráveis registros de reclamações em todo o país. Mildemberger, argumentando sobre a grande quantidade desses registros, sustenta que: 

Um exemplo é a notícia divulgada [...] que apresenta a situação na cidade de São Paulo, onde cerca de três mil registros do Disque Denúncia 181 da capital paulista referem-se a automóveis abandonados em vias públicas, sendo 800 denúncias a mais que em 2010, o que levou o tema à 4ª posição entre os temas mais denunciados na cidade. Considerando que cada um desses veículos representa em média uma tonelada de resíduos, pode-se considerar que só na cidade de São Paulo em 2011 foram abandonadas cerca de três mil toneladas de resíduos cujo ônus de coleta, armazenamento e destinação ficam para o Estado (MILDEMBERGER, 2012, p. 71).

 

 Tudo isso atesta a necessidade de que haja esforços para mitigação dos transtornos causados pelos veículos em fim de vida. Primeiramente, os cidadãos devem instar aos governos e às autoridades responsáveis que façam sua parte, tomando ações cabíveis. Deve-se exigir também que se implemente educação para o trânsito em suas muitas modalidades possíveis. Um cidadão educado nessa dimensão desde pequeno tem mais capacidade para atuar de forma útil e positiva e de exigir que seus governantes promovam as ações necessárias nesse âmbito. Sugere-se que se produzam estudos científicos com o intuito de apontar novas maneiras de se formar os cidadãos para a convivência com as questões relacionadas ao trânsito em todas as esferas. A preservação do meio ambiente deve ser cultivada ao máximo e da melhor forma, porquanto é fundamental não apenas para o bem-estar dos indivíduos, mas também para a preservação da própria vida na Terra.

Conclusão

Com tudo isso, conclui-se que os veículos em fim de vida, ou sucatas, representam séria agressão ao meio ambiente e ao bem-estar da comunidade. Degradam as paisagens urbanas, geram desconforto e até mesmo perigo à saúde e à vida dos cidadãos e trazem deterioração ao meio ambiente, como a contaminação dos solos.

Embora haja legislação que discipline a matéria, nota-se que se poderia criar normas específicas para incentivar proprietários de sucatas a entregá-las para reciclagem. Pode-se buscar também responsabilizar os produtores de veículos pela destinação desse material, assim como todos os responsáveis por sua guarda, no sentido de preservar o meio ambiente e promover a reciclagem desses veículos.

Entretanto, havendo legislação sobre a temática e não sendo devidamente respeitada, deduz-se que promover a aprovação de mais leis não é a ação que mais se requer para a solução do problema.

Uma saída seria, então, a promoção de incentivos para proprietários de carcaças, de ferros-velhos e para responsáveis por pátios de recolhimentos de veículos para que estes sejam corretamente manuseados. Há inumeráveis possibilidades de sugestões para se promover esses incentivos e a consequente minoração do problema.

Porém, é necessário que a população trabalhe para exigir que seus governos atuem de forma positiva na solução dessa problemática, já que o que tem impedido a tomada de ações adequadas é a falta de vontade de responsabilidade política. 

Flávio André de Castro Braga - Coordenador Operacional e Instrutor Interno da BHTRANS


REFERÊNCIAS

 

APÓS DECRETO, prefeitura do Rio retira apenas 23 carros abandonados. Rio de janeiro. Disponível em:  http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/03/apos-decreto-prefeitura-do-rio-retira-apenas-23-carros-abandonados.html. Acesso em: 5 nov. 2015.

LEI MULTA donos que deixarem carros abandonados na rua no interior de SP. Disponível em: http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2013/04/lei-multa-donos-que-deixarem-carros-abandonados-na-rua-no-interior-de-sp.html. Acesso em: 5 nov. 2015.

MARTINS, Gisele Gomes. Gestão de resíduos provenientes de Veículos em Fim de

Vida – análise da situação no Brasil e em Portugal. 2011. 76f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Técnica de Lisboa, Programa de Pós-Graduação em Engenharia do Ambiente, Lisboa.  Disponível em: https://www.repository.utl.pt/bitstream/10400.5/4180/1/Tese.pdf. Acesso em: 5 nov. 2015.

MILDEMBERGER, Lucélia. Avaliação dos principais aspectos da reciclagem de veículos em fim de vida: comparação dos procedimentos legais, técnicos e administrativos entre Alemanha e Brasil. 2012. 157f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná,  Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente Urbano e Industrial, Curitiba. Disponível em: http://dspace.c3sl.ufpr.br:8080/dspace/bitstream/handle/1884/28109/R%20-%20D%20-%20LUCELIA%20MILDEMBERGER.pdf?sequence=1. Acesso em: 6 nov. 2015.

ROSA, João Filipe Caetano. Gestão de Veículos em Fim de vida: do contexto internacional à realidade portuguesa. 2009. 229f.  Dissertação (Mestrado) – Universidade Nova de Lisboa, Programa de Pós-Graduação em Engenharia Ambiente, Lisboa. Disponível em: http://run.unl.pt/bitstream/10362/2387/1/Rosa_2009.pdf. Acesso em: 6 nov. 2015.