O uso do conceito de faixa preferencial aplicado a bicicletas

25/09/2016 18:00 - N. P. de Andrade

RESUMO

Uma forma de contornar o problema da inserção de espaços exclusivos para bicicletas em um sistema viário já consolidado é a política de convivência compartilhada entre veículos motorizados e bicicletas em um mesmo espaço. O artigo relata uma experiência que tem sido realizada há mais de quatro anos em João Pessoa-PB com a adoção do conceito de faixas preferenciais para bicicletas.

1 - Introdução

Tem sido evidente uso crescente das bicicletas como meio de transporte no espaço urbano no Brasil. Trata-se de um fenômeno que se observa também em outros países em virtude das dificuldades de deslocamentos nas cidades, da necessidade de políticas de melhoria da qualidade de vida, da contribuição que os meios não motorizados podem dar ao meio ambiente, por representar uma alternativa ao transporte motorizado e pelo papel que esse modo representa na busca pela sustentabilidade urbana.

A inserção do uso da bicicleta no sistema viário não é tarefa fácil. Tradicionalmente isso é feito por meio de espaços exclusivos como ciclovias ou ciclofaixas. A implantação desses espaços em cidades com a infraestrutura já consolidada torna-se bastante difícil, uma vez que o espaço viário destinado à circulação se resume geralmente a passeios para pedestres e pistas de rolamento para os veículos motorizados. A adoção de vias ou faixas exclusivas para bicicletas implica, na grande maioria dos casos, na supressão de espaços para outros modos. O próprio Código de Trânsito Brasileiro (DENATRAN, 2008) não prevê outro tipo de infraestrutura diferente das já citadas.

Por sua vez, o movimento de ciclistas no espaço urbano em dias úteis é geralmente pendular. Ocorre cedo pela manhã, nos deslocamentos de casa para o trabalho, e no final da tarde, do trabalho para casa. Fora desses horários, o movimento é muito baixo e as ciclofaixas e ciclovias são muito pouco utilizadas. Em vias com considerável volume de tráfego, fica difícil para os usuários dos veículos motorizados a aceitação da reserva de espaço para um determinado modo de transporte se não há volume ao longo de todo o dia que a justifique.

Uma alternativa para contornar esse problema é a adoção de políticas de convivência compartilhada entre veículos motorizados e bicicletas em um mesmo espaço viário. Para isso torna-se necessário a definição de modelos de compartilhamento, a realização de experimentos e a avaliação do desempenho obtido com desses modelos. Este é o objetivo deste artigo, que descreve uma experiência que vem sendo realizada em João Pessoa-Pb há mais de quatro anos no compartilhamento de faixas de tráfegos por veículos motorizados e bicicletas utilizando o conceito de Faixa Preferencial.

2 - Conceitos Básicos

O Código de Trânsito Brasileiro – CTB é muito claro sobre as condições em que devem circular as bicicletas no espaço urbano. A ciclovia é uma pista de rolamento destinada a circulação exclusiva de bicicletas e separada fisicamente do tráfego comum. A ciclofaixa, também exclusiva, difere da ciclovia por ser separada do tráfego comum por meio de sinalização específica. Quando não houver ciclovia, ciclofaixa ou acostamento, o Art. 58 do CTB estabelece que a circulação de bicicletas deverá ocorrer “...nos bordos da pista de rolamento, no mesmo sentido de circulação regulamentado para a via, com a preferência sobre os veículos automotores”. Já o Art. 59 permite a possibilidade de utilização dos passeios por bicicletas desde que autorizada pelo órgão gestor e devidamente sinalizada.

Nas situações previstas, o ciclista consegue obter algum nível de segurança apenas quando da existência de ciclovia ou ciclofaixa, já que acostamento é mais raro em vias urbanas. Na maioria das vezes ele fará uso dos bordos da pista, onde se encontra a canaleta de drenagem de água pluviais (sarjeta), bueiros e onde se acumula boa parte do lixo das vias. Mesmo que a legislação enfatize a preferência da bicicleta sobre os veículos automotores, na prática essa regra não é respeitada e o ciclista acaba se espremendono espaço estreito entre os veículos automotores e o meio-fio, o que o deixa em uma situação bastante vulnerável. Por outro lado, o uso simultâneo dos passeios por ciclistas e pedestres também só proporciona condições favoráveis quando há largura suficiente para acomodar os dois separados por sinalização e com o pavimento uniforme. Calçadas largas o bastante para esse fim é uma raridade na maioria das cidades brasileiras. O piso dos passeios, via de regra, é definido e construído pelo proprietário do lote, sem a existência de padronização, ou seja, uniformidade. Encontrar conjuntamente essas exigências, largura e uniformidade de piso, em uma calçada é sem dúvida algo muito difícil.

Mas as ciclovias e ciclofaixas demandam espaço exclusivo, que geralmente vai ser subtraído das faixas do tráfego de veículos motorizados. Uma ciclovia unidirecional requer uma largura mínima de 1,80m, composta pela largura interna (1,50m) e pelos elementos físicos separadores (0,30m). Se for bidirecional, a largura mínima é de 2,80m, sem considerar o espaço tomado pela sarjeta e para um baixo volume de usuários (MINISTÉRIO DAS CIDADES, 2007).

Como a maioria das ruas brasileiras possui largura entre 8,0 e 9,0m, o espaço necessário para uso exclusivo de bicicletas é proporcionalmente considerável e motivo de conflitos com os usuários dos veículos motorizados, o que faz com que muitos gestores tenham receio de inserir ciclovias ou ciclofaixas. A situação é mais grave nas áreas centrais onde o espaço viário geralmente é menor e a ocupação mais intensa.

Diminuir a largura das faixas de tráfego para forçar a implantação de faixas exclusivas para bicicletas, as vezes com dimensões abaixo das mínimas recomendadas tanto para tráfego motorizado quanto para as bicicletas, também tem sido utilizado mas expõe os ciclistas a um risco ainda maior pela proximidade que um passa a ter do outro ou até mesmo pela invasão de espaços. Adotar a faixa da direita com uma largura extra, acima de 3,5m, para proporcionar mais espaço para a circulação como prevê o Art. 58 do CTB, também não garante a segurança necessária.

Em resumo, na ausência de um espaço exclusivo como ciclovia ou ciclofaixa, resta praticamente ao ciclista utilizar o espaço restrito e precário dos bordos das pistas de rolamento, situação de considerável risco de acidentes.

Uma alternativa menos impactante é a circulação compartilhada da via por veículos motorizados e bicicletas. Esse compartilhamento é eficaz quando o volume de veículos motorizados é reduzido e a velocidade muito baixa, o que geralmente só se observa em vias locais.

Diante dessa limitação de opções, buscou-se uma outra alternativa de circulação para bicicletas que fizesse uso do espaço existente para veículos automotores minimizando os conflitos e riscos de acidentes que as opções atuais oferecem. Trata-se do conceito de “Faixa Preferencial para Bicicletas”, descrito a seguir.

3 - Faixa Preferencial para Bicicletas

O CTB prevê a utilização de vias e faixas exclusivas para determinadas categorias de veículos. No caso de bicicletas tem-se as ciclovias e as ciclofaixas, ambas também de uso exclusivo. A referência à “Via Preferencial” (Anexo II) diz respeito às vias que tem prioridade de circulação sobre aquelas que as interceptam, denominadas de vias secundárias.

No entanto, o Manual Brasileiro de Sinalização de Trânsito (CONTRAN, 2017), em seu Volume IV - Sinalização Horizontal, apresenta as marcas longitudinais que separam e ordenam as correntes de tráfego, definindo a parte da pista destinada a circulação de veículos e a sua divisão em faixas. São apresentadas, entre outras, as marcações para as faixas exclusivas e as preferenciais.

De acordo com os princípios de utilização apresentados no manual, a faixa exclusiva “... deve ser utilizada quando se pretende dar exclusividade a circulação de determinada espécie e/ou categoria de veículo, com o objetivo de garantir seu melhor desempenho”.

Já a faixa preferencial “... deve ser utilizada quando se pretende a circulação preferencial de determinada espécie e/ou categoria de veículo, com o objetivo de garantir seu melhor desempenho”.

A diferença entre as duas é que em uma o uso é “exclusivo” e na outra é “preferencial” e que esta última se aplica apenas no sentido do fluxo. Fora isso, a cor da sinalização, as dimensões e a forma de colocação são exatamente as mesmas.

Porém, não há uma definição clara das características funcionais ou operacionais da faixa preferencial. 

4 - Princípios de Utilização da Faixa Preferencial para Bicicletas

Para concepção e implantação de uma faixa preferencial para bicicletas foram estabelecidas algumas regras de acesso e circulação sobre ela:

·       o espaço a ser utilizado pela faixa preferencial é uma faixa de tráfego completa, e não parte dela;

·       qualquer veículo motorizado pode circular pela faixa preferencial, mas a prioridade é da bicicleta;

·       quando na via houver uma faixa preferencial, o ciclista deve circular apenas nela;

·       a circulação de bicicletas deve ocorrer no centro da faixa preferencial e não nos bordos da pista como de costume;

·       quando não houver ciclistas circulando na faixa, os veículos motorizados podem utilizá-la normalmente; e

·       se um veículo motorizado que estiver trafegando pela faixa encontrar à sua frente uma bicicleta, o veículo deve mudar completamente para a faixa da esquerda, ultrapassar a bicicleta e, se não houver mais ciclistas na faixa, voltar se assim desejar.

Com o veículo completamente na faixa ao lado e o ciclista no centro da faixa preferencial, a distância mínima de 1,5 metros de um para o outro pode ser assegurada.

5 - Sinalização

A sinalização horizontal adotada foi composta de marcações longitudinais, símbolo e legendas aplicados no pavimento da pista de rolamento.

De acordo com o Manual Brasileiro de Sinalização de Trânsito, Volume IV - Sinalização Horizontal, a marcação longitudinal utilizada para separar o fluxo de veículos automotores do fluxo de bicicletas é constituída por uma linha vermelha contínua no interior da ciclofaixa, ao lado de uma linha branca contínua no exterior.

Porém, o CTB estabelece que a utilização da linha branca contínua na divisão de fluxos no mesmo sentido e na marcação de faixas exclusivas ou preferenciais também no mesmo sentido do fluxo, não permite a ultrapassagem ou a transposição entre faixas.

Como transposição de faixas e ultrapassagem são manobras previstas na operação da faixa preferencial para bicicletas, a linha contínua branca não poderia ser utilizada. Em seu lugar foi adotada a linha seccionada branca que permite tais manobras.

No interior da faixa foi adotado também o símbolo indicativo de faixa de trânsito de uso de ciclistas, na cor branca, como prevê o Manual de Sinalização, porém sobre um retângulo vermelho para dar maior destaque.

Além disso, ainda no interior da faixa, duas legendas foram incluídas: uma com a palavra “FAIXA” e outra mais adiante com a palavra “PREFERENCIAL”. Ambas na cor branca sobre um retângulo vermelho.

As bases vermelhas do símbolo e da legenda “PREFERENCIAL” foram implantadas de forma a ocupar ao máximo a largura da faixa de tráfego, com uma folga de 20cm das linhas de divisão de fluxos e de bordo. O conjunto de sinalização dentro da faixa, composto pelo símbolo e duas legendas, foi implantado a cada 200m de distância um do outro.

Quanto à sinalização vertical, foi utilizada uma placa com sinal de regulamentação R-34 (Circulação Exclusiva de Bicicletas), acrescida de informações complementares, fixada no passeio ao lado da faixa preferencial. Ao longo de toda a extensão da faixa também foram colocadas placas de proibido estacionar. A Figura 01 apresenta em planta a sinalização adotada.

Figura 01: Sinalização horizontal e vertical da Faixa Preferencial

Todos os elementos da sinalização vertical e horizontal como marcação longitudinal, símbolos e legendas seguiram os padrões especificados no Manual de Sinalização.

6 - Vias Selecionadas para Experiência

As vias onde o experimento seria feito não deveriam ser vias locais, pelo baixo volume de tráfego e velocidade reduzida, onde as bicicletas circulam sem dificuldades, nem vias arteriais, que geralmente possuem elevadas intensidade de tráfego, e onde a disputa pelo espaço é muito forte. Tinham que pertencer a rotas conhecidas de ciclistas que usam a bicicleta como meio de transporte. Foram selecionadas duas vias coletoras que pertencem a rotas que interligam bairros de população de baixa renda com bairros onde alta concentração de empregos da construção civil, cujos operários costuma usar a bicicleta como meio de transporte. A Figura 02 ilustra esses locais.

Figura 02: Localização das vias selecionadas para o experimento

As vias foram a R. Eugênio Carneiro Monteiro com extensão de 1.450m, e a Av. Gov. Antônio da Silva Mariz com 2.000m. As duas estão conectadas às avenidas João Cirilo da Silva e Hilton Souto Maior, que fazem parte da rede cicloviária da cidade. A Figura 03 apresenta a faixa preferencial na R. Eugênio Carneiro Monteiro.

Figura 03: Faixa Preferencial na R. Eugênio Carneiro Monteiro

6 - Campanha Educativa 

O maior desafio para que a implantação da faixa preferencial para bicicletas fosse bem sucedida estava em fazer com que a população usuária, principalmente os condutores de veículos automotores, assimilasse o conceito da operação na faixa.

Para isso uma intensa campanha educativa foi realizada para divulgar a implantação das faixas e seu princípio de funcionamento. Foram utilizados programas jornalísticos em rádio e TV, jornais impressos, sites e redes sociais.

No dia do lançamento, agentes de mobilidade urbana e a equipe da Divisão de Educação para o Trânsito do órgão gestor local estiveram presentes o dia todo fazendo abordagens aos condutores de automóveis, motos e bicicletas, explicando o princípio de operação e distribuindo panfletos explicativos, a exemplo do ilustrado na Figura 04.

Figura 04: Panfletos utilizados na campanha educativa

A campanha se estendeu por vários dias. Associações de ciclistas também foram envolvidas como voluntárias para ampliar a divulgação das informações.

7 - Considerações Finais

Esse experimento teve início em março de 2012. Antes da implantação das Faixas Preferenciais foram feitos alguns levantamentos sobre o comportamento dos ciclistas nas duas vias e, principalmente, sobre sua percepção com relação as condições de circulação naqueles locais.

A campanha educativa se limitou à realizada no início da operação. Ao longo desse período, a sinalização horizontal foi mantida e reavivada sempre que necessário. A fiscalização do uso das faixas recebeu o mesmo tratamento que foi dado às demais ciclofaixas e ciclovias da cidade.

Passados mais de quatro anos desde sua implantação foi feita recentemente uma avaliação dos resultados obtidos nessas faixas com base em pesquisas realizadas sobre o comportamento dos ciclistas, condutores e automóveis e motos, e como eles avaliam essa medida.

Os resultados dessa avaliação serão divulgados em um outro artigo a ser publicado em breve.

N. P. de Andrade - professor da cadeira de transporte da Universidade Federal da Paraíba-UFPB, ex superintendente da SEMOB - João Pessoa e atualmente chefe da consultoria 

e-mail: nilpe@terra.com.br

REFERÊNCIAS

DENATRAN – Departamento Nacional de Trânsito. Código de Trânsito Brasileiro. Ministério das Cidades. Brasília – DF, 2008

MINISTÉRIO DAS CIDADES - Coleção Bicicleta Brasil. Programa Brasileiro de Mobilidade por Bicicleta. Caderno 1. Caderno de Referência para elaboração de: Plano de Mobilidade por Bicicleta nas Cidades. Brasília – DF, 2007

CONTRAN - Conselho Nacional de Trânsito. Manual Brasileiro de Sinalização de Trânsito. VOLUME IV. Sinalização Horizontal. Brasília – DF. 2007.

CONTRAN - Conselho Nacional de Trânsito. Manual Brasileiro de Sinalização de Trânsito. VOLUME II. Sinalização Vertical de Advertência. Brasília – DF. 2007.