Padrões de Qualidade do Ar atualizados para quê, para quem?

09/11/2016 08:00 - Olimpio Alvares


Mas afinal, para que servem Padrões de Qualidade do Ar - PQAr atualizados? A quem se destinam? Como se relacionam com os Programas de Melhoria da Qualidade do Ar regionais e locais? 

Mais de cinco milhões de mortes anuais são atribuídas pela Organização Mundial da Saúde - OMS à poluição do ar. As vítimas: bebês, crianças e idosos, predominantemente entre a população de baixa renda mais exposta diretamente a altíssimos níveis de contaminação atmosférica.

Em São Paulo, para citar um exemplo íntimo nosso, a contaminação por material particulado fino cancerígeno dos escapamentos de veículos a diesel e gasolina, matam silenciosamente - sem explodir bombas - muito mais do que grandes guerras do presente e do passado. Segundo estudo do Instituto Saúde e Sustentabilidade, haverá no Estado um total de mais de 246 mil óbitos entre 2012 e 2030, cerca de 953 mil internações hospitalares públicas e um gasto público estimado (somente) em internações de mais de R$ 1,6 bilhão. 

O correto entendimento do conceito de Padrão de Qualidade do Ar - PQAr - especialmente para as autoridades de saúde e meio ambiente e para políticos e tomadores de decisão - é necessário para tirar o calço da roda das instituições e alavancar as medidas de controle de poluição. Embora muitas delas sejam, por si só, superavitárias, seguem lastimavelmente procrastinadas por décadas no Brasil - como no caso da inspeção obrigatória anual das emissões dos veículos diesel, entre outras ações de custo extremamente reduzido, que poderiam por um fim a essa trágica mortandade. São abundantes os bons exemplos, como nossa vizinha Santiago do Chile, a Cidade do México e a Alemanha - que há alguns anos instituiu o Programa "Nenhum Diesel Sem Filtro", debelando da noite para o dia as milhares de mortes prematuras evitáveis, que ocorriam sistematicamente nas grandes cidades daquele país. 

Independentemente da capacidade organizacional e política das instituições de agirem, ou não, no controle da poluição do ar, por simples coerência com a ciência e com a própria semântica, os PQAr devem ser entendidos como o nível de referência de concentração atmosférica de um dado poluente, acima do qual a ciência médica indica, com absoluta certeza, a maior ocorrência estatística de danos à saúde de grupos vulneráveis; abaixo desse nível, não deve haver risco específico relevante para esses grupos, segundo as indicações da ciência da poluição do ar, expressas nas recomendações emanadas pela OMS - Organização Mundial da Saúde. 

É, portanto, necessária, a atualização imediata pelo Conama - Conselho Nacional do Meio Ambiente, dos PQAr brasileiros, nos mesmos patamares da recomendação da OMS. 

Uma analogia muito simples, para maior clareza: a ciência médica determinou que a febre (que indica a existência de doença que precisa ser tratada) está caracterizada aos 37 graus Celsius, nem mais nem menos. Não existe a ideia de que "daqui a cinco ou dez anos a autoridade médica passará a utilizar os 37 graus Celsius como indicador de febre (ou existência de doença)" - isso seria ridículo, falso e desonesto. 

Portanto, não faz nenhum sentido que as autoridades ambientais representadas no Conama (os "doutores" do meio ambiente e da saúde pública brasileira), definam oficialmente uma "febre mais alta da atmosfera", customizada para o biotipo dos brasileiros. Afinal, não somos uma espécie humana mais resistente que os humanos dos países desenvolvidos.

 Assim, estabelecer, de modo aleatório, um PQAr leniente qualquer, do melhor agrado dos que o estabelecem, sem nenhuma correlação com o que indica a ciência (de hoje) da contaminação atmosférica, induz políticos, governantes, planejadores, profissionais de saúde, cientistas sociais etc, e a população brasileira como um todo, a tomar decisões equivocadas, aumentando artificialmente os índices de morbi-mortalidade por doenças cardiorrespiratórias em nossas cidades. 

Um exemplo disso: uma família tem um filho único com vulnerabilidade respiratória extrema e tem indicação de seu pneumologista, de que é necessário que a família viva longe de áreas urbanas com níveis perigosos de contaminação. O relatório oficial de qualidade do ar do estado indica que, onde a família mora, os níveis de contaminação não ultrapassam os PQAr oficiais regulamentados; assim, estaria tudo azul no céu da saúde pública para essa família; no entanto, os níveis ali podem estar ultrapassando rotineiramente os PQAr recomendados - hoje - pela OMS e, na verdade, aquela é, de fato, para a infelicidade dessa família, uma área de risco, de acordo com a incontestável ciência médica atual. 

Mas, as autoridades oficiais instituídas estão fornecendo desde 2005 - e parece que insistem em continuar assim - uma indicação falseada para a sociedade brasileira de ausência de risco à saúde pública, justamente onde há risco à saúde pública, de acordo com a verdade científica atual. Há quem afirme que essa indução dolosa da sociedade a danos permanentes à saúde e até à morte de brasileiros, poderia eventualmente ser classificada como prática criminosa. 

Determinar em lei ou regulamento oficial, nacional ou estadual, que daqui a cinco ou dez anos - e não antes disso - iremos como sociedade praticar os PQAr da OMS de hoje (que aliás, nem de hoje são, foram publicados em 2005) é uma atitude de flagrante irresponsabilidade. Daqui a cinco ou dez anos, os novos PQAr recomendados pela OMS, conforme evolui a ciência médica, podem ser outros, bem mais restritivos; e nesse momento - responsáveis que devemos ser - teremos necessariamente que proceder uma nova atualização dos PQAr brasileiros, para não falsear essa informação crítica de utilidade pública.

Programas de Melhoria da Qualidade do Ar

Uma vez entendido o significado e utilidade dos PQAr pelo Conama, passa-se à segunda etapa do processo de tomada de decisão, que é a definição de Programas de Melhoria da Qualidade do Ar. Esses visam, na medida do possível, a atingir determinados níveis intermediários mais baixos de contaminação atmosférica e, numa fase de implementação final das medidas de controle de emissões, visam a chegar a níveis próximos ou inferiores aos PQAr - sempre atualizados, claro. 

O Programa de Melhoria da Qualidade do Ar genérico, deve ser constituído de um conjunto de recomendações do Conama para as autoridades regionais e locais tomarem como base e definirem objetivamente - em um prazo de (por exemplo) 18 meses - as metas intermediárias de qualidade do ar, prazos, diretrizes principais e as medidas locais de controle de emissões específicas para cada etapa intermediária do Programa. 

O mesmo regulamento do Conama que conceituará corretamente e definirá em caráter imediato os novos PQAr brasileiros, conforme a recomendação da OMS, deve ter um capítulo em separado, estabelecendo o Programa de Melhoria da Qualidade do Ar genérico com sua recomendação de metas intermediárias de qualidade do ar, prazos, diretrizes principais e uma relação completa das medidas específicas apropriadas para cada etapa do Programa, com vistas ao atingimento dos níveis intermediários e finais de qualidade do ar. 

Melhor ainda que um capítulo em separado, seria que esse Programa de Melhoria da Qualidade do Ar genérico fosse um anexo da regulamentação do Conama dos PQAr; ou ainda melhor, que fosse um regulamento separado, o que facilitaria muito os trâmites e a discussão que se desenrola de modo intermitente e confuso há muitos anos no Conama. 

Não há como padronizar em nível nacional para todas as cidades brasileiras, os respectivos Programas de Melhoria da Qualidade do Ar locais. Cada cidade tem seus problemas, prioridades e demais condições conjunturais complexas próprias, que certamente determinarão a miríade customizada de diretrizes e medidas necessárias, prazos etc, de modo a cumprir seus objetivos específicos. Cabe ao Conama apenas sugerir de modo genérico as metas de qualidade do ar intermediárias, prazos típicos máximos e o rol de medidas típicas mínimas obrigatórias que devem necessariamente fazer parte dos Programas de Melhoria de Qualidade do Ar regionais e locais. 

Em suma, misturar a discussão dos PQAr nacionais com o Programa de Melhoria da Qualidade do Ar, só traz grandes dificuldades de obtenção de consenso na Câmara Técnica e nos grupos de trabalho do Conama, dá margem a interferências de toda sorte e, assim, atende apenas aos anseios dos que desejam que esta regulamentação seja adiada por mais um bom tempo. 

Olimpio Alvares é Diretor da L'Avis Eco-Service, especialista em transporte sustentável, inspeção técnica e emissões veiculares; concebeu o Projeto do Transporte Sustentável do Estado de São Paulo; é membro fundador da Comissão de Meio Ambiente da Associação Nacional de Transportes Públicos - ANTP; Diretor de Meio Ambiente e Sustentabilidade da Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades - SOBRATT; colaborado do Instituto Saúde e Sustentabilidade e do Instituto Mobilize; ex-gerente da área de controle de emissões de veículos em uso da Cetesb; membro da coordenação da Virada da Mobilidade