R$ 0,20

26/06/2013 15:00 - Frederico Bussinger

Está claro que os R$ 0,20 foram só a gota d’água e/ou a ponta do iceberg ... como passou a ser bordão das primeiras análises, após a surpresa inicial com as pulverizadas e massivas manifestações dos últimos dias.

É também evidente que só pela política (a velha e boa política... à qual já estávamos meio desacostumados!) será possível construir soluções de compromisso para o multifacetado quadro que os "gritos das ruas” trouxeram à tona... o que não significa que elas não devam se assentar sobre fundamentos objetivos, técnicos, se se quer que elas sejam consequentes e sustentáveis também no médio e longo prazo. Inclusive para que possam emergir e ser arroladas novas hipóteses/alternativas de solução, não vislumbradas inicialmente, a olho nu: isso sabem os governantes!

Os pleitos iniciais começam a ser atendidos. Inúmeras cidades já anunciaram a redução de suas tarifas em função de algumas desonerações tributárias. No início da noite de ontem, São Paulo e Rio, principais centros das manifestações, se incluíram nesse rol - indo além daquilo que previamente anunciaram como resultado daquelas desonerações. Os primeiros anúncios não deixaram claro mas, para tanto, muito provavelmente tais decisões passaram a contar com algum mecanismo adicional para financiamento do setor. O tema é complexo e merece algum detalhamento.

Nas milhares de cidades e regiões metropolitanas brasileiras há casos de tarifas quilométricas, zonais e únicas (por linha/trecho ou por tempo). Sistemas de arrecadação tarifaria privada (como numa típica e clássica concessão) e outros públicos. Algumas em que os poderes públicos aportam algum tipo de subsídios e outras não (fiel ao primado do "por-conta-e-risco” das concessões). Algumas com algum tipo de "câmara de compensação” (entre linhas e/ou áreas) e outras não. Algumas com sistemas de bilhetagem por papel, outros magnéticos, outros com "cartões inteligentes” (que possibilitaram integrações sem a necessidade, obrigatória, da existência de terminais físicos). Ou seja, múltiplas combinações são possíveis.

Quando a tarifa é definida por linha/trecho, a arrecadação é privada e inexiste subsídio (o que acontece na maioria – quantitativa - das cidades), independentemente do tipo de bilhetagem, as tarifas são definidas por planilhas derivadas das tradicionais introduzidas pelo GEIPOT (1, 2, 3).

São Paulo, o berço dos recentes movimentos, tem tarifa temporal, sistema de arrecadação pública, subsídios (pesados!), uma "câmara de compensação” implícita (a denominada "conta sistema”), "cartões inteligentes” (meio material/contratual do "bilhete único” - desde 2004) e alguns valores tarifários diferenciados (com desconto). Esse sistema, para aumentar a complexidade, abrange ônibus, metrô e trens metropolitanos (desde 2006). Daí porque muitas análises da "evolução tarifárias” (1, 2) induzem a erros, pois comparam "produtos” diferentes: Antes de 2004, valor de tarifa "por trecho”; atualmente até 4 viagens, dentro de 3 horas (incluindo metrô e trem)!

A melhor forma de expressar a "conta sistema”, é uma caixas d’água. Esta tem entradas (receitas tarifárias + receitas extra-tarifárias + compensações) e saídas (remunerações de concessionários + remunerações de permissionários + despesas de operações de terminais + de comercialização de bilhetes + de fiscalização).

A diferença entre entradas e saídas, normalmente deficitária, requer subsídios (bilionários!). E, estes, certamente, transparência (uma das mensagens subliminares das ruas) e novas fontes de financiamento (sendo a CIDE, aparentemente, a mais à mão).

Em SP, berço dos recentes movimentos, o reajuste de R$ 0,20 foi revogado. Em valores e percentuais diversos, também em dezenas de outras cidades. Mas o transporte público, "direito do cidadão; dever do estado” (*), segue na pauta das manifestações e torna-se prioridade da pauta estratégica do GF, de Governadores e Prefeitos. Uma primeira reunião está agendada para esta segunda (24) à tarde e, certamente, transparência e formas de subsídio deverão estar na mesa nessa rodada inicial - seguidas de gestão e novos empreendimentos.

A expectativa e a torcida são grandes! Felizmente, como contribuições, ao contrário do que cantava Taiguara (2) ("Nós estamos inventando a vida /Como se antes nada existisse…”), há enormes acervos de estudos, discussões, propostas e experiências sobre o tema, produzidos nas últimas décadas: Estão em diversos núcleos pelo País afora, o principal deles na Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP): por que não convidá-la à mesa das negociações, ao menos como assessora técnica?

"Caixa Preta”: Diversos instrumentos com o tempo foram sendo desenvolvidos para dar maior transparência aos dados e aos critérios de cálculo – ao menos para técnicos, parlamentares, órgãos de controle e formadores de opinião:

1) Inicialmente o GEIPOT(1, 2,3) concebeu suas planilhas, largamente difundidas e usadas em quase todos os municípios brasileiros.

2) Transporte urbano é tratado pela Lei Orgânica do Município de SP – LOM nos art. 172ss. O art. 178, § único determina que o Prefeito encaminhe à Câmara, com 5 dias de antecedência, "as planilhas e outros elementos que lhe servirão de base, divulgando amplamente para a população os critérios observados”. Na maioria dos municípios há determinações congêneres; incluindo audiências públicas em diversos casos. Basta, portanto, que vereadores, entidades da sociedade, imprensa... o exijam (no padrão de qualidade necessário!), o analisem e ajam!

3) A proposta de reajuste para os R$ 3,20 (Dec. nº 53.935 – de 25/mai/2013), como nos reajustes anteriores, foi tempestivamente encaminhada pelo prefeito Haddad em 22/MAI/2013; acompanhada de dezenas de detalhadas planilhas.

4) O Dec. nº 47.139, de 27/mar/2006, criou a "Comissão de Acompanhamento da Conta Sistema", instrumento econômico-financeiro central do sistema paulistano. Tal comissão estabeleceu dinâmica de reuniões mensais para análise detalhada do desempenho do mês anterior: Basta garantir seu funcionamento; se necessário, reformulando sua composição.

 

Subsídio: A dimensão do subsídio depende, obviamente, de um lado, dos custos do sistema; de outro das suas receitas.

Custos: Dependem da produtividade/eficiência do sistema e, esta, de diversos fatores, objeto das planilhas. Mas um se destaca: A velocidade média de circulação que vem sendo reduzida – muito em função do aumento exponencial das frotas urbanas; impulsionado, no passado recente, pelos incentivos à aquisição carros novos. A reversão do quadro, para resultar na redução das despesas de custeio, demandam pesados investimentos, tanto na infraestrutura como em sistemas, RH e gestão.

Investimentos: Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, o principal entrave para um maior fluxo de investimentos não tem sido a falta de recursos... mas a baixa taxa de execução do orçamentariamente dotado: Superar 50% tem sido exceção – como o foi caso do "Expresso Tiradentes” (2,3,4). Às vezes sequer se ultrapassa 1/3!

1) Razões há várias... mas uma é kafkiana: As dificuldades para se fazer projetos, e licenciá-los, sem que haja dotação para o empreendimento; o que gera um círculo vicioso: Quando a dotação chega a ser prevista, não há tem hábil para se fazer o projeto, licenciá-lo e executá-lo no(s) exercício(s). Ou o que é pior: Faz-se projetos "de-qualquer-jeito” (maus projetos!) "só-para-se-gastar-o-dinheiro”! Esse círculo precisa ser rompido! Necessário haver (alguns) "projetos-de-prateleira”.

2) As carências no setor demandam tanto o aumento da taxa de execução como do montante dotado. Se os não-reajustes (ou reduções!) tiverem que ser efetivamente financiadas com recursos transferidos de investimentos, a situação tendo a se agravar. Urge, portanto, prover-se novas fontes de financiamento para o setor.

Fontes de financiamento

1) Nos municípios nos quais inexiste subsídio, as "gratuidades” são rateadas pelos demais usuários: O pai paga mais para o filho, estudante, pagar 50%. O filho paga mais para o pai, idoso, não pagar nada. Etc. Etc. Nesses casos, a provisão de fontes externas para arcar com as gratuidades pode ser importante instrumento da "modicidade tarifaria” (art. 6º da "Lei de Concessões”).

2) Tanto para esses como para os municípios que subsidiam parte dos custos (como SP), o instrumento mais à mão é a CIDE(proposta que foi levada pelos Prefeitos à Presidência da República).

3) A CIDE foi criada pela Lei nº 10.336/2001: uma contribuição "incidente sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados, e álcool etílico combustível…”  cujo produto da arrecadação seria destinada a "I - pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, de gás natural e seus derivados e de derivados de petróleo; II - financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás; e III - financiamento de programas de infraestrutura de transportes”. Atenção: custeio de transporte público urbano não estava explicitamente incluído!

4) A Lei foi sendo alterada e re-regulamentada; em geral com sucessivas reduções de alíquotas. Há um ano atrás elas foram zeradas, de forma a compensar o reajuste dos preços de produção dos combustíveis. Só de 2008 até agora as estimativasé que deixaram de ser arrecadados R$ 22 bilhões com tais reduções (suficientes para 17 anos de subsídios ao sistema paulistano; ou implantação de uma rede de metrô maior que a atualmente existente em SP!).

5) Tem sido cogitada a criação de uma "CIDE-Municipal”. Mas talvez seja mais simples restabelecer-se as alíquotas (por Decreto) e, se necessário, ampliar seu escopo (para incluir custeio dos transportes públicos) – agora mais que legitimado!

6) A "Conta-Sistema”, em SP (e congêneres em diversos outros municípios), mecanismo extremamente confiável, como "glicose-na-veia”, seria instrumento pronto e fácil para operacionalização, imediata, de tais subsídios.

Dados há. Conhecimento e propostas também. Parodiando conhecida marca de produtos esportivos, "just-do-it”!

 

Frederico Bussingeré Engenheiro, Consultor Técnico e Ex-Secretário Municipal de Transportes


 

(*) "Transporte: Direito do Cidadão” foi o título e era o mote das teses/propostas do "Grupo Pirata” à coordenação da "Madre Teodora” (pg. 19) (endereço, em SP, onde se reunia o núcleo de programa de Franco Montoro, candidato ao GESP em 1982). As formulações do grupo, nucleado por integrantes do "Movimento dos Profissionais por um Governo Democrático – MPGD” (criado no ano anterior no caudal da re(?)-democratização), eram erigidas sobre a ideia (não clara e disseminada à época!) de que o transporte público é imprescindível para que o cidadão urbano possa, efetivamente, compartilhar e usufruir da infraestrutura, serviços públicos, economia e cultura na/da "urbis” - motor do processo histórico de urbanização. Daí ser um "serviço público essencial”; daí um direito!

Em seminário realizado na FUNDAP, fomos questionado pelo Ex-Parlamentar e Ex- Ministro Almino (político imprescindível em momentos como este!): "Se é direito do cidadão, há que ser dever do Estado”... o que levou o mote ser completado. Mais tarde, por PL do Ver. Walter Feldman, o mote passou a ser estampado nos ônibus paulistanos; e, na Constituinte, o setor da saúde foi mais bem sucedido que os "transporteiros”, cristalizando-o como conceito na CF/88 (art. 196).