Diz-se dos truísmos– afirmativas como "todos morreremos um dia” – serem verdades de tal forma
óbvias que pronunciá-las é dispensável. A malícia que se denuncia nos truísmos,
contudo, é o fato de propiciarem efeitos para além da veracidade que enunciam.
É como fazer da certeza da morte uma licença para a negligência com a própria
vida, ou pior: com a alheia.
Estudiosos da hipnose já disseram que nosso inconsciente
aprecia afirmações óbvias – e, o mais importante – que tendemos a aceitar como
verdadeiras as afirmações precedidas por truísmos. Isso deve explicar o sucesso
de público e renda dos discursos sobre o fator humano como o grande problema
dos acidentes de trânsito. Dizer que o "ser humano” é causa dos acidentes é uma
afirmação que, embora não seja falaciosa, induz falácias. E se por um lado
ajuda a desmistificar a ideia de fatalidade, por outro propicia inferências que
pegam carona na trivialidade. Contudo, a questão nesse caso não é apenas o
efeito que a afirmação deriva, mas, antes, de onde é derivada.
A imputação dos acidentes de trânsito às causas "humanas”,
que remonta aos anos de 1930, toma por base matrizes como o clássico trinômio homem-via-veículo que, como outras
consagradas trindades da segurança viária, nada mais é do que aquilo a que um modelo
se presta: uma simplificação funcional da realidade, tendo nisso virtudes e
limitações que, não ponderadas, empobrecem a apreciação do problema e, é claro,
os seus encaminhamentos. A tríade, tal como se apresenta, chama para um de seus
componentes toda carga de subjetividade e erro, peculiar ao que é humano. Nessa
racionalidade, o referencial propicia uma armadilha semântica que faz recair
sobre o usuário da via (por quem se intercambia o "homem” da fórmula) a quase
absoluta responsabilidade pelos acidentes – como se humanos não fossem os que
concebem os veículos, as vias e o controle do tráfego sobre elas.
Uma colisão e suas consequências remetem suas análises a
preceitos da biomecânica e a postulados da física, válidos universalmente; já
as conjunturas em que ocorrem, não. Assim, identificar obsessivamente o
problema que existe nos comportamentos não é reprovável na constatação em si,
mas no que minimiza os contextos que favorecem as condutas. Em regra, o
expediente do fator humano atende a um moralismo oportuno para eximir
autoridades e os encarregados de explicar o trânsito de forma menos rasa. O
discurso é também celebrado por setores atentos aos custos da segurança
veicular e pelos que geram ambientes de circulação predominantemente inseguros. Chamados a responderem sobre as causas dos
acidentes, sacam discursos prontos e, não raro, filosofam sobre "o brasileiro”
e sua propensão à infração.
Com a questão assim estruturada, acusa-se a irracionalidade
de um pedestre que não utiliza uma passarela, mas raramente aponta-se o que
implica o uso desse recurso. Afirma-se que um acidente se deu por causa de uma
ultrapassagem indevida (verdade!), mas nunca o fato de uma rodovia não ser
duplicada ou fiscalizada no trecho sabidamente perigoso. Assim, instituído o consenso sobre o
comportamento do usuário da via como o grande problema do trânsito, o cacoete
do fator humano produz outro efeito, amparado por outro lugar comum, mãe de
todos os truísmos: "a educação é base de tudo”. Em suma, remete-se o problema para
um setor que, antes de se sentir lisonjeado pela lembrança, deveria desconfiar
da exaltação fácil da instrução redentora – fala, em geral, mais retórica do
que sincera, que ainda dá a quem a pronuncia a sensação de dever cumprido, pois
sempre cai bem dizer que a educação é fundamental.
O tipo de educação que costuma advir desse entendimento da
segurança viária assume que nada ou pouco há de errado com os demais aspectos
(técnicos, jurídicos, políticos ou institucionais) que determinam a natureza do
trânsito que temos. E mesmo que houvesse, caberia às pessoas adaptarem-se às
condições existentes para manterem-se vivas. Ou seja, além de rasa, a visão
acaba prestando-se a uma perversa legitimação de um ambiente perigoso e
excludente.
Que não se entendam essas linhas como um descrédito à
educação para o trânsito, mas, antes, como algo em sua defesa, em respeito aos
que se veem na contingência de, entre outros desafios, convencer um idoso ou
uma gestante a desviarem de sua rotas, caminhar três vezes mais, subir o
equivalente a quatro andares e andar por uma passarela insalubre –tudo isso
para, no mais das vezes, apenas não prejudicar o fluxo veicular. Ademais, ainda
que possa muito, a educação não pode tudo. Se prevalece a impunidade (ou sua
sensação térmica) e faltam condições materiais para o comportamento seguro, o
discurso educativo se esvazia, e
imputar-lhe a condição de panaceia apenas faz recair sobre seus profissionais
uma carga injusta, além de muita frustração.
Tampouco se entenda aqui não haver lugar para a ação
educativa. Ele existe e pode ser mais do que um recurso legítimo para
reduzirem-se as lesões e mortes no trânsito. Com efeito, a educação prescrita
em nosso Código de Trânsito deixa transparecer uma inegável inspiração na
Constituição de 1988 com sua aura de refundação do País, resgatando preceitos
democráticos. Portanto, não é exagero dizer que, mais que um rol de condutas, o
Código de Trânsito Brasileiro (CTB) buscou compartilhar com a Constituição
Federal, uma vez que formulados em momentos históricos próximos, um projeto de
nação, no que ensaiou princípios de cidadania em uma democracia incipiente.
Essa peculiaridade não pode ser ignorada quando buscamos entender as
possibilidades da educação de trânsito no País.
A educação recebeu no CTB de 1997 ênfase jamais dada em
legislações anteriores: ganhou um capítulo inteiro, ao passo que a Lei de 1966
mal abordava o assunto e, no Código de 1941, a palavra sequer aparecia. E esse
capítulo sucede outro, emblematicamente denominado "Do Cidadão” que, em
consonância com o primeiro artigo da Constituição, lembra a possibilidade de as
pessoas reivindicarem mudanças no trânsito. Portanto, valem sim os esforços,
quando calçados em boa ciência, no sentido de incentivar a conduta segura,
preservando o bem maior da vida. Mas dada a inspiração que o marco legal
enseja, é inaceitável que as iniciativas educacionais sejam reféns de fórmulas
que pouco se prestam a uma abordagem crítica e emancipadora.
A vivência prática de preceitos de direitos e deveres,
ética, participação, equidade e inclusão – aspectos que favorecem a
criação de condições para ambientes e
atitudes seguras – requer da educação um entendimento do trânsito como fenômeno
social, inserido nos contextos mais amplos da mobilidade, do planejamento, das
políticas urbanas e do desenvolvimento sustentável, para ficarmos em
alguns.
Aceitar essa dimensão multisetorial do trânsito, é verdade,
complexifica sua análise, para o desgosto de quem confunde objetividade com
simplicidade. Mas também a enriquece, proporcionando resultados mais efetivos e
sustentáveis. A este exemplo, o setor saúde, mais recentemente envolvido no
tema, traz contribuições para além da qualificação da informação, já em si
essencial. O espaço e o foco deste texto não suscitam aprofundar o assunto, mas
vale, a título de provocação, lembrar as considerações do setor aos
determinantes sociais e à perspectiva da promoção da saúde, que enfatiza a
redução dos riscos em si, atacando o
problema em sua fonte. A visão prima, em essência, por advogar entornos que
facilitem e induzam à ação saudável e segura, em vez de meramente apregoar
condutas. Nada mais consonante com uma educação que forme e informe e não
meramente conforme as pessoas ao ambiente existente.
Victor Pavarino - Sociólogo, Mestre em Transporte, atua em Programas de Segurança Viária