04/10/2015 08:25 - Folha de SP
Para urbanistas, a chegada de novos atores reflete duas tendências: a
redescoberta das áreas centrais, com imóveis a preços acessíveis e boa
estrutura de transporte e de serviços, e o maior uso de espaços públicos
Dois espaços tradicionais da Santa Cecília sempre flertaram
com a fama. No Esquina Grill do Fuad, na Martim Francisco, fotos nas paredes
registram atores e até ex-presidentes. Na rua Canuto do Val, reduto de bares, a
empresária Lílian Gonçalves planeja fazer uma calçada com nomes de artistas.
Nos últimos dois anos, porém, estabelecimentos diferentes
chegaram e começam a mudar a cara do bairro. Em comum, valorizam o trabalho
autoral, a economia colaborativa, a simbiose com raízes locais e a conexão com
um público que evita produtos de consumo de massa.
Entre os ao menos 11 novos endereços na região, há
restaurante meio "slow food", lanchonete de hambúrgueres artesanais e
um bar que recebe exposições.
"Grandes editoras já vieram nos procurar, mas só
aceitamos produções independentes", conta João Varella, 30, da Banca
Tatuí. Ali são vendidos livros, fanzines e obras de arte. Reformada com projeto
de um escritório de arquitetura, a banca recebe até shows em seu teto.
Para urbanistas, a chegada de novos atores reflete duas
tendências: a redescoberta das áreas centrais, com imóveis a preços acessíveis
e boa estrutura de transporte e de serviços, e o maior uso de espaços públicos.
"Quando o mercado percebe interesse, reage rápido e
passa a oferecer produtos para esse novo público", diz Valter Caldana,
diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie.
"A Santa Cecília é centro, por ser bem localizada, mas
não é, pois tem muitas residências e pouco barulho", diz Talitha Barros,
35, que abriu o Conceição Discos há um ano e meio. Pioneira na nova onda, ela
ajudou outros a se instalarem no bairro, como o Holy Burger e o Beluga Café, ao
qual fornece lanches de rosbife.
"A longo prazo, esse aumento do interesse do mercado
pode expulsar pessoas de renda menor", pondera Pablo Hereñú, professor da
Escola da Cidade. A comparação com a Vila Madalena é inevitável: imóveis
menores deram lugar a edifícios de classe média alta e, com a subida de preços,
o local deixou de ser opção de moradia para estudantes, parte do público que
criou a aura cultural do lugar.
A região da Santa Cecília ganhou prédios nas décadas de 1960
e 1970, mas a verticalização foi contida pela chegada do Minhocão. "A
presença dele ajuda a segurar o preço dos imóveis na região", afirma
Caldana.
Por outro lado, o elevado também é creditado como um dos
protagonistas da renovação. A chance de a via se tornar parque atiça o mercado:
são ao menos dez novas incorporações na região. "Quando vejo essas placas
com 'baixo Higienópolis', quero morrer!", diz a empresária Luciana
Obniski, 32.
TRADICIONAL E GOURMET
Comerciantes que se instalaram na região antes do elevado
veem com bons olhos a chegada de novos negócios. "Pensamos em criar um
roteiro gastronômico", conta Lilian Sallum, 36, sócia do Esquina Grill do
Fuad.
"A Santa Cecília é o bairro mais legal da cidade agora.
Tem um pouco de Higienópolis e um pouco do centro.", diz Adriane Lisboa,
25, arquiteta e, há um ano, moradora do bairro.
"É o bairro da moda", diz Derek Fernandes, 25,
arquiteto e sócio do Elevado Café e Bar, instalado ao lado do Minhocão desde
maio.
Esse ambiente ganha novo charme com o despertar de
dualidades: brechós novos ao lado de alfaiates cinquentenários, loja de bolos
tradicionais contígua a uma confeitaria gourmet, sebo de discos versus
restaurante moderno que vende vinis.
"Existe aqui uma identidade muito específica e é
importante mantê-la. As pessoas têm amor por esse lugar", diz Adriane, à
frente do escritório de design de interiores Pair, também uma loja. "A
gente não tem o mesmo movimento de uma Oscar Freire nem o mesmo custo de
aluguel."
A inovação alcança até os mais tradicionais redutos da
região. É o caso do Ugue's, hoje do outro lado da rua e com ares modernosos.
Lílian Gonçalves, 67, inaugura nesta semana um espaço de
comida saudável, o Tudo com Banana, ao lado dos outros cinco bares da Rede
Biroska.
"Teremos bebidas detox, como o 'suco do
preguiçoso'." Já Luciana, habitante do bairro, vai abrir um bar ali em
breve: "A ideia é fortalecer essa outra economia, a vivência
saudável". Dois mundos se encontram.
Minhocão protagoniza
mudanças
Polêmico desde a abertura, nos anos 1960, o Minhocão é alvo
de visões opostas. Para uns, obstáculo arquitetônico; para outros, oásis de
lazer na árida região central.
"O Minhocão é nosso muro de Berlim, que nos separa do
resto da cidade", diz Fábio Fortes, 48, presidente do Conseg (Conselho de
Segurança da Santa Cecília). Ele defende a desmontagem. "Alguns preferem o
fluxo de carros ao de pessoas. Quem mora perto precisa lidar com barulho,
raves."
A ocupação, no entanto, só cresce, em especial após a inauguração
da ciclovia na base e o fechamento antecipado para as 15h de sábado -o fluxo é
de 5.000 a 10 mil pessoas aos fins de semana, diz Felipe Morozini, 40, da
associação Parque Minhocão.
"Eu já nem discuto o parque, pois as pessoas fizeram
dele realidade", diz o fotógrafo. "O que pergunto é que cidade é essa
em que as pessoas precisam ocupar uma rua sem sombra, banco, banheiro, por
falta de áreas de lazer?"
A dualidade se estende à lei: o Plano Diretor aprovado em julho de 2014 alterna opções de futuro: demolição ou adaptação a jardim suspenso. O Google tomou partido: seus mapas agora chamam o local de "parque Minhocão".