10/02/2015 08:03 - Vá de Bike
Eu havia me prometido não escrever nada sobre a matéria da
Veja que sobe o custo médio das ciclovias para R$ 650 mil reais, mas com os
comentários absurdos que tenho visto nas redes sociais, não me contive. Esse
texto era para ser apenas um desabafo na minha página pessoal no Facebook, mas
conforme escrevia fui buscando fontes e números e acabou saindo maior. Achei
justo compartilhar minha interpretação dos fatos com todos vocês. É minha
opinião pessoal, portanto você pode concordar ou não, mas pelo menos leia o que
eu tenho a dizer.
A matéria da Veja sobre ciclovias foi construída para passar
uma opinião. Para isso, utilizaram várias informações que já eram de
conhecimento público, cortaram a parte que não lhes interessava, temperaram
carregando nas tintas para dar o sabor desejado e serviram de forma a conduzir
o raciocínio para o conceito no qual a matéria foi pautada: o de que o plano de
ciclovias só serviria para desviar dinheiro.
Não por acaso, na sequência a Folha de São Paulo publicou
uma pesquisa do Datafolha sobre a administração Haddad, reforçando até no
título da matéria que menos gente tem usado a bicicleta em São Paulo. E como
fizeram esse levantamento? Mediram? Fizeram uma contagem? Passaram uma tarde
sentados observando? Não: perguntaram para pessoas nas ruas, talvez por
telefone. Pode até ser que a metodologia tenha sido perfeita e que o universo
estatístico tenha sido selecionado de maneira isenta, mas o fato é que quem
pedala na cidade percebe claramente um aumento enorme de bicicletas nas ruas,
principalmente nesse início de ano. Você, que pedala nas ruas, percebeu um
aumento ou queda de setembro para cá?
Mas vamos a algumas considerações sobre a matéria da Veja.
Irregularidades
Se há alguma irregularidade no processo de contratação, ou
na própria empresa que está tocando a obra da ciclovia da Paulista, é claro que
isso deve ser apurado. Mas da maneira correta. Na matéria só há dúvidas e
questionamentos, publicados com tintas de denúncia, seguindo a linha do que a
edição nacional costuma fazer, expondo suposições que acabam por servir como
prova incontestável para uma parcela de seus leitores. Me surpreende que a Veja
São Paulo, que sempre teve posicionamento e qualidade jornalística que
contrastavam com a publicação principal, tenha enveredado agora nesse caminho
de difícil volta.
Demanda e importância
de Paulista e Vergueiro foram ignoradas
Uma repórter da revista entrou em contato essa semana para
obter ajuda com a matéria, em forma de dados e informações. Isso, diga-se de
passagem, é algo completamente normal e corriqueiro. Atendo jornalistas ao
telefone quase todos os dias. Ela me perguntou se a ciclovia da Paulista era
importante e eu respondi que sim, expliquei os motivos, esclarecendo que fazer
a ciclovia nas paralelas não seria uma boa solução e falando sobre a grande
utilização da avenida por quem usa a bicicleta como transporte, mesmo sem haver
ainda ciclovia.
Falei da contagem de ciclistas realizada na Paulista 5 anos
atrás e falei de outras contagens, como Faria Lima, Eliseu, Inajar de Souza eVergueiro. Sobre essa última, destaquei que pouco após a inauguração foi feita
uma contagem que detectou 2 ciclistas por minuto no pico da tarde. E que agora,
alguns meses depois, forma-se uma pequena fila de ciclistas quando o sinal
fecha, relatando que semana passada mesmo havia três ciclistas à minha frente e
outros dois vindo mais atrás (foto em destaque nessa matéria). Acrescentei que
se eles fizessem uma breve contagem entre 18 e 19 h na altura do Paraíso,
ficariam impressionados com a quantidade de ciclistas, e que esse era um dos
indicadores de que a ciclovia da Paulista terá alta utilização, semelhante ou
até superior à da Faria Lima.
E, de tudo isso, o que entrou na reportagem? Que a Faria
Lima, a Eliseu e a Rio Pinheiros eram "os melhores trechos em funcionamento”,
como sequência de um parágrafo que começa dizendo que "a maioria das faixas
aparenta não ter muita utilidade prática como transporte público”. Não falaram
nada sobre a Vergueiro, porque afinal é uma ciclovia do modelo novo, inserida
no projeto que está sendo criticado, então a matéria não poderia falar bem. Também
não citaram nem de leve a importância e o potencial de utilização da ciclovia
da Paulista, porque também não vem ao caso, esse não era o objetivo da matéria.
Rio Pinheiros
A Ciclovia Rio Pinheiros foi citada como um dos "melhores
trechos em funcionamento” em São Paulo, um bom exemplo de ciclovia útil para o
transporte. O curioso é que não há estatísticas abertas sobre a Ciclovia Rio
Pinheiros, que sofre interdições constantes, tem poucos acessos (alguns comescadarias perigosas) e reclamações sobre o risco de assaltos na pista da
margem oeste. Por essas razões, tem sido muito menos utilizada para commutingdo que seu verdadeiro potencial. Quem acompanha sabe. Mas é a ciclovia que foi
inaugurada por José Serra, então bora lá contrapor sutilmente, mostrando como
ciclovia modelo.
Ainda disseram que tem "piso bem conservado, boa sinalização
e fluidez”. Se fluidez significa não precisar fazer paradas, claro que ela tem
fluidez, pois não está integrada ao viário. Não é necessário parar em semáforos
e cruzamentos, pois ela fica isolada, às margens do rio. Mas se você considerar
como parte da fluidez a facilidade em acessá-la, fica difícil fazer essa
afirmação. Muitos ciclistas a evitam, pois "fluem” bem melhor por fora dela, já
que em alguns casos é necessário aumentar o trajeto em até 4 km para conseguir
usar a ciclovia, em comparação com o uso da pista local da Marginal. Quanto à
sinalização, não há muito o que sinalizar além do pavimento, que no trecho mais
antigo já está bastante desgastado (o que não é de todo ruim, já que a tinta
que foi utilizada ali escorregava demais quando molhada, cansando vários
acidentes com ciclistas em dias de chuva).
Os primeiros 14 km da Ciclovia Rio Pinheiros, inaugurados em
fevereiro de 2010, custaram R$ 714.285 por km, consistindo basicamente de
recapeamento asfáltico de uma pista de serviço que já existia, com pintura em
vermelho. Mas para a matéria da Veja, ela tem boa fluidez, piso bem conservado
e boa sinalização. Divulgar o custo não ajudaria a compor o cenário da matéria,
portanto deixaram de lado.
Faria Lima
O dinheiro para a expansão da Ciclovia da Faria Lima (por
sinal, um projeto com pelo menos 10 anos) vem de outro lugar, da Operação
Urbana Faria Lima. Os recursos são provenientes da outorga onerosa de potencial
adicional de construção (CEPACs) e outras modificações à legislação de uso e
ocupação do solo, concedidas aos proprietários de terrenos contidos no
perímetro da Operação Urbana interessados em participar. É um dinheiro que já
estava previsto, que não pode ser usado para obras fora da Operação e que
engloba tanto a ciclovia como outras intervenções relacionadas, como reforma de
calçadas e readequações do viário. Portanto, não deveria entrar nessa conta,
foi colocada só para subir a média. E ainda por cima é uma obra que seria
tocada por qualquer prefeito que fosse eleito, pois já estava em andamento.
Eliseu de Almeida
Quem conhece a região há mais tempo sabe que abaixo daquele
canteiro central há o Córrego Pirajussara, por isso ele é elevado em diversos
pontos, tornando a intervenção um pouco mais complexa. É preciso deixar tampas
de serviço em alguns pontos da ciclovia, para que possam ser utilizadas como
acesso ao córrego. Houve readequação do viário em alguns pontos, além de toda a
construção do pavimento. Pouco provável que as ciclovias que serviram para
calcular as médias em outros países tenham essa característica.
É correto usar um projeto com características diferenciadas
no cálculo dessa média, comparando com países onde as intervenções costumam se
resumir a isolar um trecho do viário para a circulação de bicicletas,
segregando no máximo com um meio-fio? Você decide.
O primeiro trecho da Ciclovia da Eliseu de Almeida, entregue
em 2014, utilizou recursos provenientes de emendas de vereadores.
Custo da ciclovia da
Paulista
O custo da ciclovia da Avenida Paulista é alto porque, como
no caso da Faria Lima, não é só a ciclovia que está sendo implantada. Há
intervenções como a reforma das calçadas na Bernardino de Campos e a passagem
de fibras óticas pelo subsolo do canteiro central – que, por sinal, está sendo
totalmente reconstruído. É justo colocar o valor total da obra nessa conta, pra
subir assim essa média? É correto usar essa média, que inclui projetos com
intervenções mais amplas do que tradicionalmente é feito em outros países, para
uma comparação com médias mundiais? Decide aí e conta aqui nos comentários da
página.
Estruturação da
matéria
Conduzir o raciocínio não é complicado para quem tem
experiência nisso. Os elogios rasgados à importância das ciclovias no início da
matéria tem o objetivo de desarmar o leitor que é favorável a elas, mostrando
que a matéria está do mesmo lado que ele, que a intenção é ter ciclovias sim.
Uma ótima estratégia de comunicação para fazer a argumentação descer mais
suave. Como vi em um comentário na minha timeline: "mas eles até elogiaram as
ciclovias, não devem ter exagerado na matéria”.
Como ficaria o gráfico com a comparação de custos retirando
os projetos que têm perfil bastante diferente do que costuma ser feito nas
"segregated bike lanes" criadas lá fora.
Como ficaria o gráfico com a comparação de custos, retirando
os projetos que têm perfil bastante diferente do que costuma ser feito nas
"bike lanes” criadas lá fora. São Paulo passaria a se equiparar a Copenhagen e
Amsterdam.
Custo médio
Bem interessante o gráfico comparando o custo médio de
ciclovias ao redor do mundo. Sério mesmo. Tudo bem que "apuração de um time de
correspondentes no exterior” não é bem uma fonte, né, gente? Mas ok, os valores
até que estão dentro do esperado. Só me pergunto por que ele não tinha
aparecido até agora, quando se falava amplamente que 200 mil por km seria um
completo absurdo.
A propósito, uma rápida busca por imagens de ciclovias em
Berlim, a cidade que está no topo dessa lista, dá uma boa ideia de como elas
são por lá: há ciclovias sobre a calçada, locais onde o ciclista circula a um
palmo dos ônibus, em trechos onde não há nem tachões, só uma faixa branca, e
situações de pavimento irregular e conversões esquisitas que deixariam os
críticos paulistanos de cabelo em pé. E isso custando mais que o dobro da
infraestrutura padrão implantada nas ruas de São Paulo.
Gostaria de ver um gráfico com o custo médio do km de
avenida, ponte ou viaduto em São Paulo e no resto do mundo. Se alguém que nos
lê se animar a fazer a pesquisa, apontando corretamente as fontes (em vez de
"correspondentes no exterior”), publicaremos aqui.
Recomendamos a leitura do artigo "Corrigindo os cálculos da
revista Veja”, no site Diário da Mobilidade, que fala sobre o real custo das
ciclovias em outros países.
Contra as ciclovias
Há em andamento um movimento contrário às ciclovias em São
Paulo, organizado e estruturado por políticos de oposição, com apoio dos
editores de jornais e revistas tradicionais. Isso fica claro quando se lê
matérias como essa da Veja, como essa outra do Estadão ou mesmo as fan pages de
alguns vereadores ou deputados de renome. O objetivo é claramente partidário e
faz parte da disputa pelo poder, mas traz consequências diretas sobre nossas
vidas e nossa integridade física – não só pelo risco de reverterem o processo
de implantação, nos deixando novamente nus em meio a motoristas intolerantes,
mas também pelas agressões e ameaças crescentes de motoristas a ciclistas nas
ruas, que passam a nos ver como coniventes com tudo de ruim que se imputa ao
partido político do prefeito, só por circularmos de bicicleta nas ruas.
O pior de uma matéria como essa é acirrar o preconceito com
ciclistas na cidade, um efeito que pode, indiretamente, levar a ferimentos e
mortes por intolerância no trânsito. Mas duro mesmo é ter que aguentar gente
com dificuldade de interpretação (ou desonestidade argumentativa mesmo) dizendo
aos quatro ventos que "o quilômetro de tinta tá custando 650 mil”. E se você
contesta, é chamado de petista, com toda a conotação negativa possível, quase
criminosa, como se você fosse conivente com tudo que acontece de errado no
país, do mensalão à falta d’água, do escândalo da Petrobrás à crise de
segurança pública, só por acreditar que as pessoas que usam a bicicleta merecem
ter suas vidas protegidas por ciclovias.
Ciclovias salvam
vidas
Enquanto se discute os pelos desse ovo, pessoas continuarão
morrendo por falta de segurança no viário e pelo comportamento irresponsável de
alguns motoristas. E objetivo das ciclovias é justamente proteger quem se
desloca de bicicleta. Nesse fim de semana, foi instalada a décima sétima Ghost
Bike de São Paulo, uma bicicleta branca em memória de Noel Moreno Leite, que
perdeu a vida na Av. Belmira Marin, zona sul da capital. E hoje, segunda-feira
9/2, uma moça ainda não identificada foi atropelada na Av. João Paulo I,
Freguesia do Ó, Zona Norte. Em nenhum dos locais havia ciclovia.
Um exemplo bastante claro é a Av. Eliseu de Almeida.
Prometida desde 2004 e mesmo com um fluxo diário de mais de 600 bicicletas
(2012), a ciclovia só teve seu primeiro trecho concluído dez anos depois, em
2014. As mortes eram frequentes, como as de Lauro Neri (2012), Nemésio Ferreira
Trindade (2012), José Aridelson (2013) e Maciel de Oliveira Santos (2014), e
poderiam ter sido evitadas se as gestões anteriores tivessem atendido à demanda
popular e às várias manifestações realizadas na avenida e junto à
subprefeitura. Com o primeiro trecho pronto, em 2014, foram contados 888
ciclistas em 14h, um aumento de 53% em relação a 2012. Quase mil pessoas por
dia que, agora, circulam de forma bem mais segura, sem o risco a que foram
expostos Neri, Trindade, Aridelson, Santos e tantos outros anônimos todos os
dias.