Tema em discussão: Revisão da lei de licitações.

01/09/2014 08:00 - O Globo

O risco da flexibilização – Editorial O Globo

A lei federal 8.666, que reúne um conjunto de normas gerais para regular licitações relativas a contratação de serviços e obras (e também, entre outras rubricas, compras, alienação e publicidade da União, dos estados e municípios), foi assinada em 1993. É um instrumento para regular atividades em áreas onde, pelos montantes de verbas públicas envolvidas, são previsivelmente grandes os interesses envolvidos.

Mas, decorridos vinte anos, é natural que novas demandas não sejam por ela corretamente contempladas. Há duas décadas, por exemplo, não se ouvia falar em tecnologia da informação, e os complexos e corriqueiros sistemas eletrônicos de hoje em dia pareciam apenas projeções para um futuro mais distante. Neste meio tempo, a lei, por força da necessidade, sofreu remendos, que precisam ser consolidados em seu corpo. Impõe-se, portanto, rever a legislação.

O problema é que esse pressuposto, correto, tem dado margem a uma esperteza: no curso da revisão da lei de licitações — contemplada em projeto da senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), em tramitação no Congresso — a base aliada do governo federal tenta contrabandear para a legislação uma danosa flexibilização das normas dos processos licitatórios. A vingarem as manobras, a lei dará anteparo, entre outros males, a licitações suspeitas, obras inacabadas e com custo superfaturado, quando não desnecessárias etc.

A janela de oportunidade para essa nociva movimentação abriu-se após a edição da Medida Provisória 527, que em 2011 instituiu o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC), com o objetivo de facilitar a contratação das obras para a Copa. Tinha-se como argumento uma alegada exiguidade dos prazos para a construção de estádios, reformas físicas e aperfeiçoamento dos meios de mobilidade urbana.

Ainda que a flexibilização tenha servido, em algumas cidades-sede, de pretexto para "malfeitos”, o pressuposto podia até ser aceitável. Estenderam-se, depois, seus efeitos para o PAC e, em dezembro de 2013, o governo federal editou outra MP, a 630, ampliando o RDC para obras do SUS e penitenciárias. De aberta, a janela escancarou-se: a relatora da MP, senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR), ex-chefe da Casa Civil, propôs estender a flexibilização para todas as obras públicas. Na prática, o RDC substituiria a lei 8.666.

Em boa hora, a proposta foi derrotada no Senado, mas isso não significa que seus patrocinadores tenham desistido. Persiste o risco, agora na tramitação do projeto da senadora Kátia Abreu. As principais ideias da flexibilização são a inexigibilidade de apresentação de projeto completo na licitação de obra — fator de estímulo à baixa qualidade e aumentos de custo e prazo —, renúncia a parâmetros orçamentários definidos, terceirização do planejamento de construções, garantias fluidas contra aditivos aos projetos etc.). Tentou-se incluir o projeto na pauta do esforço concentrado da Casa, movimento em boa hora abortado, e é possível que ele não seja votado antes da eleição. Mas, a qualquer tempo, o Legislativo tem obrigação de barrar as manobras.

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Avanço ou retrocesso - Gustavo Schwartz

A despeito da crítica que se pode fazer ao trâmite do projeto de lei que pretende atualizar e modernizar a Lei 8.666/93 — o Senado tentou votá-lo em uma das sessões do chamado "esforço concentrado”, quando muitos senadores estão ausentes em razão de compromissos eleitorais, enfraquecendo o debate sobre o seu conteúdo — certo é que essa iniciativa legislativa vem atender aos anseios de revisão da Lei Geral de Licitações.

Em verdade, é sentimento unânime na comunidade jurídica que a Lei Geral de Licitações criou procedimentos excessivamente burocráticos, que em nada contribuíram com os ideais de eficiência e economicidade, sendo incapaz, por outro lado, de coibir eficazmente os desvios de conduta e a corrupção na contratação pública. Por isso a importância dessa iniciativa legislativa, que busca uma revisão total da Lei 8.666/93, em contraposição às alterações pontuais já efetivadas, e que estampa logo no início do texto do PLS 559, em seu artigo 4º, entre outros, os princípios da eficiência, celeridade e economicidade.

Buscando atender aos princípios da eficiência, da celeridade e da economicidade, o PLS 559 incorpora ao regime geral inovações bem sucedidas, implementadas anteriormente por leis específicas. É exemplo disso a inversão de fases do procedimento licitatório, que restringe a análise dos documentos de habilitação aos do licitante vencedor; e a ampliação da utilização da modalidade pregão, que passa a ser obrigatória para a contratação de obras comuns. O projeto não se limitou, no entanto, às mudanças ligadas à eficiência dos procedimentos licitatórios. Introduziram em seu texto, da mesma forma, medidas mais efetivas no combate aos desvios de conduta e à corrupção, seguindo algumas delas o modelo já previsto em outros dispositivos legais.

É assim, por exemplo, com a previsão de implantação pelo Tribunal de Contas da União, em coordenação com os demais tribunais de contas, do Cadastro Nacional de Inadimplentes e Punidos (Cadip). Nele serão inscritos aqueles a quem foram aplicadas penalidades previstas no PLS 559, a fim de que não possam participar de licitações promovidas pelos demais órgãos da administração pública. Por outro lado, prevê a possibilidade de a administração pública não divulgar os preços estimados para o objeto licitado, evitando-se, de um lado, a formação de cartel, e favorecendo, de outro, a competitividade entre os licitantes.

Mas não é só. O projeto avançou no combate à fraude na licitação, ao impedir a participação em procedimentos licitatórios daquele que estiver manifestamente atuando em substituição a uma pessoa ou empresa impedida de contratar com a administração pública. Isto é, impediu a participação de uma espécie de "laranja”. É certo que, não obstante os relevantes avanços que o projeto de lei 559/2013 tenta introduzir na disciplina das contratações públicas, só o tempo dirá se ele foi eficaz no combate aos males que pretende minimizar.

Gustavo Schwartz é advogado