Aplicativos criam a ‘economia do bico’

01/09/2014 08:18 - O Estado de SP

NATASHA SINGER - THE NEW YORK TIMES

Pouco depois das 4 horas da manhã de uma sexta-feira, enquanto a maioria de seus vizinhos num subúrbio de Boston ainda dormia, Jennifer Guidry estava na entrada de seu apartamento com o cabelo louro penteado para trás numa trança francesa bem feita, aspirando o pó no interior de seu carro. A rotina madrugadora é uma estratégia que Jennifer, veterana da Marinha e ex-contadora, usa para reduzir a incerteza de trabalhar no que é conhecido como economia de compartilhamento.

Jennifer, de 35 anos, ganha dinheiro usando o próprio carro para transportar estranhos para Uber, Lyft e Sidecar, serviços de transporte de carro que permitem que pessoas convoquem motoristas por meio de aplicativos de smartphones. Ela também monta móveis e limpa jardins para clientes que a encontram no TaskRabbit, um mercado online para afazeres domésticos.

Seu objetivo é ganhar ao menos US$ 25 por hora, em média, para manter a casa e sustentar os três filhos. Mas isso está cada vez mais difícil. Recentemente, Uber e Lyft reduziram tarifas de passageiros. No mês passado, o TaskRabbit reviu a maneira que seus usuários escolhem seus auxiliares. Imediatamente depois da mudança, o fluxo de clientes de Jennifer despencou.

"Você não sabe o que virá amanhã”, disse ela. "É muito impreciso.” No linguajar promissor da economia de compartilhamento, cujos sites e aplicativos conectam pessoas que buscam serviços com vendedores desses serviços, Jennifer é uma microempresária: uma fornecedora independente que ganha dinheiro oferecendo suas habilidades, tempo ou propriedade para consumidores em busca de uma carona, um quarto para dormir, a retirada de uma peça de roupa na lavanderia ou uma organizadora de armários.

Para pessoas que buscam um emprego complementar, esses serviços podem proporcionar uma renda extra. Há uma série de empresas desse tipo. O Airbnb, por exemplo, aluga camas, quartos, casas e apartamentos. A TaskRabbit e o Fiverr são agências online de serviços cotidianos. O Postmates e a Favor atuam em entregas sob encomenda. Já o Instacart é um serviço de entrega de compras do mercado.

Num clima de alto desemprego, porém, pessoas como Jennifer são menos microempresárias do que microrremuneradas. Elas trabalham sete dias por semana, tentando juntar um salário decente com uma série de bicos avulsos e têm poucos recursos quando os serviços a que se oferecem mudam seus modelos de negócios.

Para reduzir os riscos, alguns trabalhadores atuam em vários serviços. "Ter um portfólio diversificado é a melhor proteção”, diz Sara Horowitz, fundadora da Freelancers Union, uma organização de defesa de direitos. "As pessoas estão fazendo isso em meio à estagnação salarial e desigualdade de renda.”

‘Precariado’. A mão de obra fragmentada não é um fenômeno novo. Mas acelerada pela tecnologia e embalada como aplicativos, ela adquiriu um verniz mais brilhante sob novas rubricas: economia de compartilhamento, economia de pares, economia colaborativa.

Os bicos oferecem a perspectiva de autogestão e variedade, com trabalhadores aceitando tarefas diversificadas de sua escolha e definindo seus próprios horários. "Eles valorizam a independência e a flexibilidade; para muitas pessoas, isso tem sido transformacional”, diz Shelby Clark, fundador da RelayRides, um mercado de compartilhamento de carros.

As empresas de capital de risco parecem convencidas. O Uber levantou mais de US$ 1,5 bilhão de investidores; o Lyft levantou US$ 333 milhões; e o TaskRabbit, US$ 38 milhões. Parte do atrativo para investidores é que as companhias evitam folhas de pagamento enormes, funcionando efetivamente como agências de mão de obra.

Não há estatísticas definitivas sobre quantas pessoas trabalham na economia de bicos. Mas, segundo um relatório da consultoria MBO Partners, cerca de 17,7 milhões de americanos trabalharam mais da metade do tempo como colaboradores independentes.

Com a facilidade maior para encontrar bicos do que empregos formais de longo prazo, está surgindo uma nova classe de trabalhadores dependente de trabalho e salário precários. Em vez de "proletariado”, o economista do trabalho Guy Standing os chama de "precariado”. "Eles podem ser capazes de pintar o celeiro de alguém nesta semana”, diz Standing, professor de estudos do desenvolvimento na Universidade de Londres. "Mas não sabem o que ocorrerá na próxima semana.”

Ele vê esse mercado como parte de um fenômeno global maior, em que as pessoas são encorajadas a trabalhar avulsamente, sem benefícios ou proteções básicas do emprego. Os aplicativos, basicamente, canalizam tarefas avulsas para o ofertante mais rápido ou para o que oferecer o menor preço, diz ele, jogando os trabalhadores uns contra os outros numa espécie de luta de eliminação de mão de obra.

Sem benefícios.Alguns economistas afirmam que, no curto prazo, os serviços precários, bicos, poderão acabar reduzindo a remuneração dos trabalhadores no longo prazo. Baker, do Centro de Pesquisas Políticas e Econômicas, diz que o mercado de trabalho online poderá contribuir para baixar os custos para os consumidores porque pode ser feito de ambas as maneiras: comportando-se como empregadores de fato, sem arcar com os custos reais ou com os encargos sociais dos trabalhadores. "Num mercado de trabalho fraco, não existe uma fábrica para os empregadores ou quase empregadores operarem”, afirma Baker. "Isso talvez venha a exercer uma tremenda pressão sobre os salários. É uma história muito feia.”

Os ativistas afirmam que é possível que as empresas que usam o trabalho precário acabem, por outro lado, com todo o poder dos trabalhadores, tirando-lhes condições justas de emprego. "Esses não são empregos com um futuro, empregos que oferecem a possibilidade de a pessoa se aperfeiçoar; são trabalhos temporários, arbitrários”, diz Stanley Aronowitz, diretor do Centro para o Estudo da Cultura, Tecnologia e Trabalho no Graduate Center da City University de Nova York. "Tanto vale chamá-lo de escravidão com salário em que todas as cartas estão na mão do empregador, com a intermediação da tecnologia, a empresa intermediária ou o cliente.”

O TaskRabbit começou a oferecer aos seus contratados um seguro-saúde com desconto e serviços de contabilidade. O Lyft fez uma parceria com a União dos Freelancers permitindo que seus motoristas tenham direito ao plano de saúde da associação profissional e outros benefícios.

Ainda assim, Jennifer Jennifer vê vantagens. "Gosto da minha liberdade”, disse. "Não gostaria de fazer nenhuma dessas coisas num emprego em tempo integral”, acrescentou Jennifer. Mas ela admite que talvez não tenha condição de continuar nessa rotina. Entre as 10 horas da manhã do sábado e as 5 horas da manhã do domingo, ela ganhou cerca de US$ 263. "Foi um dia bom, mas longo.”