04/10/2015 08:40 - Estado de Minas
A reportagem do Estado de Minas segue na jornada sentimental
pelas linhas que ligam vidas e histórias em Belo Horizonte. Às 17h30,
desembarca na Área Hospitalar em busca do ônibus que leva para a Saudade, na
Região Leste. É preciso correr para pegar o 9801 (Santa Cruz–Saudade). Três
meninos que saem de uma escola pegam carona do lado de fora, na Rua Álvares
Maciel, e seguem – escutando um funk bem alto – pendurados nas portas até o
Paraíso, que, com letra maiúscula, é o bairro, não o Éden.
Sacolejando a bordo, há tempo para indagar sobre
denominações tão curiosas. O Bairro Saudade, por exemplo, leva esse nome por
causa do Cemitério da Saudade, construído por lá em 1941, em uma das partes
mais elevadas da cidade. Enquanto o motorista Cláudio Santana, de 47 anos,
acelera cuidadosamente pelas ruas estreitas do lugar, é possível observar a
fusão das cores no lusco-fusco da capital mineira. Tons de rosa, laranja e
amarelo se fundem no horizonte e enchem a alma de sentimento nostálgico. "Tenho
saudade da minha família que mora na roça, lá em Pimenta de Baixo, distrito de
Piranga”, confidencia o motorista.
Depois que a luz do dia se vai, um gato aproveita o asfalto
ainda quente da Rua Doutor Brochado, em frente ao ponto final do 9801, para se
deitar. Enquanto passageiros esperam pela saída do próximo ônibus, um senhor
faz um discurso de ódio contra o governo, xinga palavrões e maldiz o voto
alheio. O gato pega no sono e quase é atropelado por um carcomido Kadett. São
18h15. A maioria dos passageiros agora é formada por estudantes, que embarcam
de banho tomado. O perfume das mulheres e os cabelos molhados passam a dominar
o ambiente e animam a equipe de reportagem, que segue no 10º ônibus do dia.
Logo no começo da jornada, às 11h, a linha 3030, que seguiu
do Bairro Funcionários para o Bairro Pilar, também estava repleta de
estudantes, a caminho de uma universidade da Região do Barreiro. Contrariando o
senso comum, apenas duas pessoas tateavam seus smartphones, enquanto quatro
estudavam atentamente. "Eu não sei o que é genoma até agora”, segredou uma
estudante para a outra, sentada ao lado. "Os nucleotídeos formam o genoma”,
resumiu a colega.
TENSÃO E AMEAÇA
Enquanto o 3030 fazia o retorno no Centro, na Avenida Afonso
Pena, três mulheres pegaram carona penduradas na porta. Uma delas gritava que
ninguém poderia prendê-la. Quase na Praça Sete, um policial militar ordenou que
descessem – sem sucesso. Quando o coletivo passava em frente ao prédio da
Prefeitura de BH, uma viatura policial aguardava as três, mas elas conseguiram
escapar. Um amigo do trio ficou irritado com o repórter fotográfico, que
registrou a cena. Desceu do ônibus ameaçando "um tiro na cara”, mas apenas
vociferou. Alívio que não tiveram as pessoas que estavam no mesmo ambiente em que
ameaça igual se concretizou, na quinta-feira, em um ônibus da linha 1502, nos
cinco estampidos que tiraram a vida de um fiscal.
Refeito o susto, voltando do Bairro Pilar, a reportagem
desembarca em frente ao BH Shopping, no Belvedere. Troca para o ônibus da linha
010 (BH Shopping–São Francisco). Mais que nos deslocamentos dentro da cidade,
essa viagem faz jus ao nome, pois segue majoritariamente pelo Anel Rodoviário.
No micro-ônibus, padrão das linhas suplementares, o tamanho reduzido permite
escutar a conversa alheia.
Duas moças falam sobre a atitude de uma terceira, que elas
acreditam trair o marido. "Ela chega lá e diz: 'Oi, amor!’ na maior cara de
pau”, se indigna a que segue sentada na poltrona do corredor. Da janela, é
possível ver o muro vermelho de um drive-in, no Bairro Betânia, na marginal da
estrada, e a mulher sentada na portaria, que tecla em um celular.
O desembarque é no Anel mesmo, logo após cruzar o viaduto
sobre a Avenida Amazonas. Em nossa vida passageira, hora de embarcar no 3053,
que vem do Barro Preto, Região Oeste, e vai até a Estação Barreiro, próxima
parada. O sol abrasador das 14h ameaça cozinhar os passageiros. Cinco estão
dormindo e nem prestam atenção aos cartazes colados embaixo do viaduto da
Cidade Industrial: shows do Roupa Nova e do Racionais Mcs. São indiferentes
também à pichação que conclama à revolução e pede que os cidadãos não votem.
A Avenida Amazonas, com as avenidas Antônio Carlos e
Cristiano Machado, forma o conjunto dos principais corredores de tráfego da
capital. A BHTrans estima que até o fim do ano que vem, a Amazonas terá seu
Move, assim como as outras duas.
GARGALO NA PONTA
Enquanto o BRT não chega à Amazonas, a reportagem embarca no
65 (Centro – Estação Vilarinho) às 19h50, na Avenida Santos Dumont, no Centro.
O Move está lotado, mas o ar-condicionado ajuda – funciona bem. As televisões
repetem notícias em loop infinito: novo disco do U2, política na Grécia, nova
música de Paula Fernandes e previsões astrológicas. A recomendação é para que
os escorpianos tenham paciência na vida amorosa.
As janelas fechadas, o ar-condicionado e o barulho do motor
contribuem para que as pessoas fiquem indiferentes ao que ocorre do lado de
fora, nas avenidas Antônio Carlos e Pedro I. Um senhor, em pé, lê em um Kindle,
vários passageiros ouvem música e outros cochilam. Muitos olhares furtivos para
a moça vestida com roupa de ginástica, cujos braços estendidos revelam axilas
perfeitamente depiladas. Após 25 minutos, o Move passa pela Estação Pampulha e
é possível ver, à direita, o circo armado – aquele mesmo anunciado horas atrás,
enquanto aguardávamos o 1505 no Centro da cidade.
Para quem precisa seguir em uma das linhas alimentadoras,
quando se chega à Estação Vilarinho, o único circo imaginável é o de horrores.
A fila para embarcar no 641, com destino ao Bairro Serra Verde, é imensa. O
ônibus da linha alimentadora chega e todos entram. Mantendo a analogia
circense, o lotação se parece com os velhos carros de palhaço, onde um número
improvável de pessoas se espreme.
Reclamações são o ruído de fundo, difuso, onipresente. "Todo dia é assim: passa a cada 40 minutos. Ninguém consegue ficar esperando o próximo”, protesta a vendedora Edileidi Silva, moradora do Bairro Minas Caixa. Antes do Move, ela saía do Centro às 19h e chegava a sua casa pouco depois das 20h. Agora, se consegue embarcar na linha alimentadora às 20h20, chega às 21h. "É uma falta de respeito”, resume a promotora de vendas Luciana Pereira. Vida que segue, viagem também. Amanhã, é dia de embarcar de novo.
VIDA PASSAGEIRA: um
dia e uma noite nas linhas de ônibus que ligam Belo Horizonte
Em 14 viagens, curiosidades, figuras e temor nas linhas que ligam
pessoas e histórias
Os raios de sol atravessam as janelas do ônibus da linha
3030 (Pilar–Olhos d’Água–Centro) e realçam os contornos da moça bonita que vai
sentada, levando três bolsas grandes. "Você pode descer no último ponto da
Afonso Pena”, avisa o trocador à jovem de batom, esmalte e cabelo – tudo
vermelho – combinando com a cor das sapatilhas. São12h30 de uma segunda-feira e
a atraente dama de vermelho é mais uma anônima entre os quase 1,6 milhão de
passageiro que circulam diariamente de ônibus, nos dias úteis, em ruas e avenidas de Belo Horizonte. Nessa
multidão, a conversa nem sempre é tão amena: às vezes, resvala na irritação;
noutras, descamba para a violência, como a que vitimou um trabalhador dias
atrás. Mas a vida tem que seguir. Sofrida, mas, felizmente, mais tranquila na maioria das viagens. Para revelar
histórias escondidas nesse sobe e desce, a reportagem do Estado de Minas
embarcou em 14 ônibus, circulando por 12 horas. Durante o intervalo de um dia e
uma noite, observou nuances, problemas, sufoco e contratempos daqueles que se
valem dos coletivos para se locomover na metrópole. Além, é claro, de escutar –
com respeitosa indiscrição – conversas alheias e registrar a paisagem da
janela.
DA JANELA LATERAL
O Bairro Pilar, na Região do Barreiro, final da linha 3030,
quase não tem prédios. Vistas passando pelas janelas do ônibus – ou balaio,
busu, busão, como também é conhecido na gíria dos pontos – , muitas das casas
revelam os chamados puxadinhos, como um andar a mais, às vezes inacabado, ou um
terraço. Reboco e pintura são artigo raro. Na Rua Rio das Flores, quem segue o
sacolejo pode observar um pé de couve imenso, mais alto que o muro da casa. Um
açougue exibe uma placa com a promoção de suã: R$ 2,99 o quilo. O cheiro de
comida refogada escapa de alguma cozinha e invade o lotação – outro nome do que
também já foi conhecido genericamente como "condução”. Pouco antes de o veículo
alcançar a BR-040, a caminho do Centro, barracões se equilibram sobre barrancos
em um contrassenso pouco seguro.
"Fico prestando atenção na cidade. Gosto de olhar o
paisagismo”, conta Angélica Santos, de 21 anos. São 22h e ela volta da aula, no
Centro, para a casa da tia, no Bairro Caiçara, na Região Noroeste. Estuda
engenharia de produção e, no seu trajeto, já observou mais do que prédios,
carros e árvores. "Uma vez, vi um morador de rua sendo atropelado aqui na
avenida (Afonso Pena)”, lembra. Puxando os fones do ouvido, a garota interrompe
a música para conversar. Escutava o trio eletrônico Years & Years. A música
Desire (Desejo em português) fala de amor e sedução.
Sentimentos, aliás, não faltam entre as 291 linhas do
transporte coletivo de BH. Em frente ao Edifício Central, na Avenida dos
Andradas, passa um ônibus que tem como destino a felicidade. Ou melhor: o
Conjunto Felicidade, na Região Norte. Aqueles que aguardam a linha 1505R ali
têm ainda outras opções para tentar alcançar a alegria. Uma casa lotérica
alimenta a cobiça de dias sem ônibus, informando o prêmio acumulado – R$ 13
milhões da Mega-Sena – e um carro com equipamento de som anuncia em alto volume
as atrações de um circo. O júbilo, mesmo que breve, pode ser buscado, em último
caso, na casa de balas e doces, ao lado da lotérica. Serve para adoçar a
espera.
O SENTIDO DO LOTAÇÃO
A alegria mais barata de passageiro, no entanto, é subir em
ônibus vazio. Quando o 1505R chega ao ponto do Edifício Central, às 15h50,
todos conseguem assentos. O lotação segue pela Avenida Cristiano Machado e,
quando se aproxima da Estação São Gabriel, lotado, já faz entender o apelido.
Nilcinha Rodrigues, de 32 anos, passa aperto para se acomodar com os dois
sobrinhos, ao embarcar no Bairro Tupi. A menina desliza por baixo da roleta,
enquanto o menino equilibra, com dificuldade, dois marmitex de isopor. "É
sorvete”, explica Nilcinha, que está retornando do dentista com os pequenos.
Ela nasceu em Pescador, no Vale do Mucuri. Trabalhou como
vigilante, mas, no momento, não está empregada, pois se recupera de um acidente
de moto."Se eu sou feliz? Sou sim. Felicidade não se encontra nos outros, mas
em Deus”, prega a fiel da Igreja do Avivamento Bíblico, moradora do Felicidade
há 20 anos. A reclamação dela é apenas com o que considera descaso da
prefeitura, que não canaliza o Córrego Tamboril – um desses eufemismos que
nomeiam canais de esgoto de onde o cheiro sobe forte e nauseante.
O aposentado José Matosinhos, de 79 anos, não compartilha do
contentamento quase completo da vizinha. "Até as pulgas aborrecem”, entende
José, que faz coro ao reclamar do cheiro do "córrego”. A bordo do busão, os
passageiros não percebem ter mais sorte que os dois burros que, sem opção,
pastam na beira do que já foi um curso d’água. Um pouco mais longe, quem desceu
observa os garotos Pedro, Robert e Lucas, que jogam futebol no campinho de
terra batida. Ao perceber o repórter fotográfico registrando os lances, se
esforçam para acertar um gol de bicicleta. São 16h45 quando o 1505R deixa o
Conjunto Felicidade em direção ao Centro.