18/04/2014 08:15 - Folha de SP
RUY CASTRO
RIO DE JANEIRO - Um dia – digamos, em 2214 –, quando a
história falar de nossa época, páginas importantes serão dedicadas ao
automóvel. "Era um veículo impraticável, dispendioso, poluidor e
assassino", elas dirão. "Apesar dessas evidentes desvantagens, alguns
países insistiam em fabricá-lo, em vez de investir em meios de transporte mais
razoáveis. Ou planejar as cidades de modo a que as pessoas pudessem ir a pé, ou
de calçada rolante, para seu trabalho ou lazer.
"Os governos da Eurásia e dos Estados Unidos do
Pacífico-Atlântico, ao se convencer do anacronismo do automóvel, descontinuaram
sua fabricação. Outros, em busca de índices que lhes fossem eleitoralmente
favoráveis, fizeram do automóvel o eixo de sua economia, privilegiando-o com
alíquotas camaradas.
"Num país sempre desastrado, o Brasiguai, os mandantes
continuaram a estuprar as cidades com viadutos e túneis e a derrubar casas para
abrir estacionamentos. Mas não havia espaço que chegasse para tanto carro. Em
certo momento do século 21, aconteceu o que ninguém julgava possível: o Rio
ultrapassou São Paulo em matéria de engarrafamentos. E isso foi só o começo.
"Em 2050, um congestionamento-monstro estendeu-se do
Guaporé às Missões e de Puerto Sastre ao Leblon. Foi um nó nacional. Parou
tudo. As cidades ficaram isoladas e sem abastecimento. As pessoas, infernizadas
por uma vida no trânsito, enlouqueceram. Em massa, começaram a deixar os
volantes para saquear o comércio, destruir os bancos e se esganar entre si. A
polícia aderiu ao levante. Os estoques acabaram. O governo ruiu.
"Os países avançados, cansados de tanto avisar, nem se mexeram para ajudar. Acharam bem feito. Com isso, o Brasiguai regrediu a 1500, à economia primária, de comer o que há em volta. Mas seu povo já está cansado de comer pneus".