30/10/2014 07:05 - O Globo
Tudo é breu no bairro de Santa Cruz, Zona Oeste do Rio. São
5h da manhã e as ruas estão às moscas. O cenário muda quando me aproximo do
terminal do BRT, primeira de 35 estações rumo à Barra da Tijuca. O sol ainda
não nasceu, mas o lugar de onde partem os primeiros ônibus do corredor expresso
já está apinhado de gente. É lá, a 60 quilômetros de distância do Centro, que
começa minha jornada para testar o sistema que transporta, todos os dias, 400
mil cariocas.
Caminhar no estreito espaço entre as roletas de acesso e a
plataforma de embarque é penoso, tamanho o número de pessoas. Entrar no ônibus
exige destreza: a multidão se lança sobre as portas num arranque só, todos se
acotovelando e se jogando uns sobre os outros, como se o mundo fosse acabar.
Isso na fila dos que não se importam em viajar em pé. Na outra, de quem deseja
ir sentado, a organização é feita por funcionários — mas ali reinam os
espertos, que não se envergonham de furar a fila.
— Hoje até que está calmo, a porrada ainda não comeu. As
pessoas ficam nervosas, acabam se atrasando no trabalho, e a paciência vai para
o ralo. Não há santo que aguente isso todos os dias — resume a diarista Soraia
Dutra, bem no dia de São Judas Tadeu, o santo das causas impossíveis, urgentes
e desesperadas. Ela trabalha na Barra da Tijuca e usa o sistema diariamente.
O BRT nasceu há 40 anos em Curitiba. Foi lá que ele se
consagrou, espalhando-se por diversas cidades ao redor do globo, como Bogotá,
Vancouver e Los Angeles. Mas os "ligeirinhos”, como são chamados lá, demoraram
a chegar ao Rio — o primeiro foi inaugurado há dois anos. Aqui já foram
entregues dois corredores para ônibus articulados (com dois carros) e
biarticulados (três): o Transoeste, que liga Santa Cruz e Campo Grande à Barra,
e o Transcarioca, que conecta a Barra ao Aeroporto Internacional Tom Jobim.
A vida melhorou para as pessoas que usam o transporte. Soraia,
por exemplo, não demora mais duas horas na antiga linha 882 (extinta após a
inauguração do Transoeste) para percorrer o trajeto entre sua casa e o
trabalho. Agora ela faz isso na metade do tempo. O problema não está no
intervalo de deslocamento dos veículos, que fogem do trânsito intenso ao
percorrerem uma pista restrita aos ônibus. É no embarque anárquico e no
desconforto posterior que residem as principais reclamações.
Após quase duas horas conversando com passageiros no
terminal, tento entrar no primeiro ônibus em direção à Barra, mas não consigo.
Na segunda tentativa, quase perco a mochila durante o empurra-empurra, muito
parecido com o que se vê em estações de trem e metrô na hora do rush.
— Coloque a mochila na frente — sugere o solidário Ronaldo
Ricardo dos Santos, 23 anos, auxiliar administrativo. — E tome cuidado com o
vão entre a plataforma e o ônibus. Já vi uma pessoa cair no buraco em meio à
correria. Aqui é cada um por si e Deus por todos, parceiro.
IMPOSSÍVEL SE MOVER
Quando o terceiro veículo se aproxima, um sujeito ao lado
põe-se a berrar: "Anda, anda, anda”. Lembro de Fabiano, o retirante de "Vidas
secas”, obra-prima de Graciliano Ramos. Ao ver o filho mais velho caído sem
forças no solo da caatinga, diz ao menino: "Anda, excomungado”. Eu ando, desta
vez um pouco mais agressivo, e venço o primeiro desafio.
Próximo: escolher, dentro do ônibus, a melhor posição — pois
nos próximos 60 minutos será impossível se mover. Sinto meu corpo encostado em
outros cinco ao mesmo tempo. Embora não seja tão agradável ter um suvaco perto
do nariz, não sofro de nenhum tipo de fobia social. Só me resta fazer o mesmo
que todos: seguir em frente. Com minha canela junto à panturrilha de Talita
Elias dos Santos, 23 anos, puxo conversa com a moça. Ela trabalha como auxiliar
de serviços gerais na Zona Sul. Reclama de dor na coluna e nos braços,
decorrente do sufoco no veículo.
Quem também está grudado na gente é o instrumentador
cirúrgico Jorge Fernando de Sá Pires, 22 anos. Ele ri ao descobrir que a voz
aveludada que ouve diariamente, anunciando a próxima estação, é de Iris
Lettieri, a locutora que empresta sua sedução ao aeroporto Tom Jobim. No meio
do caos, ouvir Iris é um certo alento. "Next stop, Alvorada Station”, anuncia
Iris, inconfundível, para alívio da multidão. "Mind the gap” (cuidado com o
vão), ela lembra.
Após sessenta minutos de aperto no Transoeste, chegamos ao
Terminal Alvorada, que recebe quase 50 linhas diariamente. De lá é possível
migrar para o BRT Transcarioca sem custo adicional. Espero 27 minutos até o
próximo ônibus. Embarco às 8h20 com mais 21 pessoas. Todos vão confortável e
silenciosamente em seus assentos. Alguns usam o bagageiro do veículo para
guardar suas malas. Funcionários de companhias aéreas e do próprio aeroporto
também estão no veículo. O ônibus passa por paisagens inusitadas do Rio. Vê-
se, em certo momento, a Igreja da Penha bem de baixo. O melhor vem depois,
quando cruzamos o Arco Prefeito Pedro Ernesto, instalado há poucos meses sobre
a Avenida Brasil. Do alto, surge o Complexo da Maré a perder de vista.
DEMANDA SUBESTIMADA
É surpreendente saber que o Transcarioca, tranquilo até
demais no trecho Alvorada-Galeão, possui mais ônibus articulados (180 contra
120, aproximadamente) e mais passageiros do que o Transoeste. A assessoria do
Consórcio BRT explica: no primeiro, 80% dos trajetos são feitos nos horários de
pico. No outro, o vaivém dura o dia todo. Mas por que viajar no Transoeste é
tão árduo?
— O estudo que deu origem ao plano operacional da linha
subestimou a demanda. Estamos vendo o número de passageiros crescer, o que leva
ao esgotamento da capacidade. Para resolver isso, é simples: basta aumentar a
oferta de veículos — afirma José de Oliveira Guerra, professor de engenharia de
transportes da Uerj. — É um problema cuja solução é amplamente conhecida e
bastante elementar: com o aumento da frota, o intervalo de passagem dos
veículos vai cair, e o desconforto das pessoas será menor. É matemático —
completa.
Guerra afirma que o tempo de fabricação de um ônibus
articulado demora de quatro a seis meses, ao contrário de um ônibus comum, que
é feito em dois meses. Ou seja: mesmo que novos ônibus sejam encomendados hoje,
a solução exigirá paciência dos passageiros.
Em nota, o presidente do Consórcio BRT, Jorge Dias, disse
que, para atender à demanda, "as saídas são regulares, sendo planejadas e
executadas por nosso Centro de Controle Operacional que dispõe de informações
em tempo real sobre o deslocamento da frota e a situação nas estações".
Além disso, "a frota vem sendo constantemente redimensionada. De dezembro de
2013 a outubro deste ano, o aumento foi de 52%. As empresas operadoras do
sistema ainda têm alguns carros em fábrica para receber”. Não foi informado
quantos (nem quando) os novos ônibus devem chegar.
400 MIL PASSAGEIROS | É quanto transportam juntos, diariamente, os BRTs Transoeste e Transcarioca. |
300 ÔNIBUS | É o total da frota que circula nos BRTs Transoeste e Transcarioca, segundo o consórcio que opera o sistema de ônibus expressos. |
R$ 2,8 BILHÕES | Custo dos BRTs Transcarioca (R$ 1,9 bilhão) e Transoeste (R$ 900 milhões). |