01/10/2014 07:35 - Cultura e Mercado
LEONARDO BRANT
Desisti do carro há quase 3 anos. A decisão veio acompanhada
do desligamento do serviço de telefonia celular, da TV por assinatura e de uma
reforma alimentar que eliminou produtos industrializados, carne, café e bebida
alcoólica dos meus hábitos. Um processo de desintoxicação, que visava, acima de
tudo, expurgar os males da civilização. Queria me proteger da sociedade de
consumo – e do espetáculo.
Sob forte inspiração de Gandhi e influência direta de Lia
Diskin, da Palas Athena, posso resumir minha busca numa palavra: práxis. O mal
estar da pós-modernidade havia se materializado em mim de forma irreversível e
concreta por meio da incoerência absurda entre o que penso e o que faço.
Weber já apontava para essa interdependência entre o nosso
comportamento como gerador daquilo que nos aprisiona. "Somos assombrados pelos
monstros que criamos”, reforça Edgar Morin referindo-se ao imaginário social
construído pelas religiões e, sobretudo, pela mídia. Sair dessa lógica, no
entanto, é bem mais difícil e complexo do que simplesmente abrir mão dos
fetiches, dos instrumentos de representação – e de coerção – já arraigados nos
modos de vida dessa sociedade.
Há duas semanas fui convidado a abrir um seminário sobre
educação para o trânsito e mobilidade urbana, na Unicamp. Ali, tentei fazer uma
conexão direta entre a cultura do automóvel e a indústria cultural. Parti da
minha experiência pessoal, das mudanças provocadas no meu dia-a-dia, mas
sobretudo pelo imbricamento entre o tecnologismo capitalista, aqui representado
pelo automóvel, como seu símbolo supremo, e a cultura de consumo, exarcebada
pela "sociedade do espetáculo”.
Parti de um diálogo entre a ideia de cultura, sua origem
etimológica, explorada em meu novo livro, O Poder da Cultura, e a contraposição
entre cultura matrística e cultura patriarcal proposta por Humerto Maturana, em
Amar e Brincar, editado, não por acaso, pela Palas Athena. E a cultura do
automóvel como uma espécie de síntese imagética dessa cultura patriarcal,
baseada na competição, no status, na busca do poder, da distinção, da
privatização do espaço público, e o consequente modelo de desenvolvimento
decorrente dessa cultura.
Mesmo sendo o meio menos eficaz de locomoção no espaço
urbano, o automóvel representa um dos maiores itens no orçamento familiar do
brasileiro médio e um dos maiores custos para a sociedade, pois exige grandes
investimentos de infraestrutura. Isso sem contar a conta ambiental e no sistema
de saúde, já que o acidente de automóvel é uma das maiores causas de morte no
mundo.
Mesmo assim constitui a base do nosso projeto
desenvolvimentista, símbolo do governo JK, de Itamar e até mesmo de Lula, que
utilizou o incentivo ao consumo de automóveis como um dos principais agentes
provocadores da resistência do país à crise financeira. Ao mesmo tempo que
estimulava o endividamento da família brasileira, aumentava os impostos da
atividade cultural, que segundo pesquisas do próprio governo, gera mais
empregos que a indústria automobilística.
Mas há também uma interdependência entre indústria cultura e
do automóvel. Adorno nos deixou a seguinte provocação em seu clássico texto
sobre "A Indústria Cultural” (1947):
A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação.
Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada em si mesma. Os automóveis, as
bombas e o cinema mantêm coeso o todo e chega o momento em que seu elemento
nivelador mostra sua força na própria injustiça a qual servia. Por enquanto, a
técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e à produção em
série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do
sistema social.
A competição, o individualismo, a busca de status, a opção
pelos grandes amontoados urbanos e a consequente exclusão das vias de acesso
àqueles que não possuem automóveis, são urgências do homem civilizado
contemporâneo. A busca incessante por informação, o acúmulo do know-how, a via
expressa. O carro potente, veloz, automático, seguro, confortável, tornou-se
uma espécie armadura que protege o "homem de bem” das inseguranças do século
XXI.
A via asfaltada, a velocidade, a pressa, são necessidades
contemporâneas fabricadas por nosso modelo civilizacional. O automóvel torna-se
o fetiche supremo, uma espécie de falos coletivo que move, como nenhum outro
objeto, em direção ao abismo dos sentidos.
Vivemos num vácuo de significados. O ato do consumo nos
conforta, nos dá a segurança e a autoconfiança para continuarmos em frente,
fazendo aquilo tudo que já não acreditamos, mas já não temos força ou uma nova
utopia que nos redirecione.
O único antídoto que eu conheço para esse vazio é
preenchê-lo com arte e cultura. Da boa e também da ruim. Daquilo que eu gosto e
do que eu duvido. Um pouco também daquilo que só os loucos, os sonhadores e
atrevidos têm condição de nos mostrar.
Enquanto for presa fácil dos meios de comunicação, com sua
publicidade e o seu marketing, e da cultura oficial, com demagogia e populismo
crescentes, o cidadão, de bem ou do mal, só verá esse vazio aumentar. E gerar
os desequilíbrios e distúrbios imaginários que vivemos atualmente.
Seis meses depois religuei o celular; hoje utilizo o
automóvel da minha companheira em situações específicas, uma ou duas vezes por
semana; bebo moderadamente e estou em busca de uma clínica de reabilitação para
viciados em cultura e café. Se alguém aí souber, por favor me avisa!
Leonardo Brant - Pesquisador
cultural e empreendedor criativo. Sócio-fundador do Cemec, é presidente do
Instituto Pensarte e diretor-executivo da 360Graus. Autor dos livros O Poder da
Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros.