27/04/2015 08:05 - O Globo
À frente do Ipea, Jessé Souza quer traçar um retrato dos
brasileiros que entraram no mercado de consumo. Para ele, o país não se
conhece. O sociólogo assumiu este mês a presidência do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) disposto a traçar um retrato inédito dos brasileiros
e, em especial, dos trabalhadores que recentemente entraram no mercado de
consumo. Mas esses brasileiros, afirma, não são de classe média. Souza é um
crítico da ideia, defendida antes pelo Ipea e encampada pelo governo, de que o
Brasil é um país de classe média
Quais são os planos para o Ipea?
Como órgão da Secretaria de Estudos Estratégicos (SAE),
queremos municiar a ação do governo a curto, médio e longo prazo. Manter o que
vem sendo bem produzido e criar mais dois projetos estratégicos. Um deles está
com título provisório de "Radiografia do Brasil Moderno — onde estamos e para
onde podemos ir”.
É uma nova pesquisa?
É um estudo importante e inédito, porque vai unir três
perspectivas que sempre andaram apartadas. A primeira é o conhecimento
estatístico dos grandes dados. Mas, ao contrário do que muita gente pensa, os
números não falam por si, precisam ser interpretados. E, para serem
adequadamente interpretados, é necessária a dimensão compreensiva, têm que ser
enriquecidos por uma perspectiva muito mais difícil de ser percebida, que é
como as pessoas pensam e interpretam o mundo. E elas fazem isso de modo muito
distinto, a partir da sua classe social.
É uma espécie de super censo?
Sim, mas não é censo, porque o censo só dá o dado. Vai ter o
tratamento estatístico refinado, junto com um estudo compreensivo sobre as
classes sociais. Interessa descobrir como capacitar essa classe de
trabalhadores, que cresceu muito nos últimos anos, para que ela seja capaz de
assimilar novas tecnologias e aumentar sua produtividade. Para isso, é
necessário entender como se dão as várias dimensões da sociedade. É preciso ter
em mente que cada classe nem é uma coisa só, nem é composta de indivíduos
diferentes entre si, mas um meio termo. Sem uma noção articulada disso, a gente
não consegue conhecer a realidade e modificá-la.
Parece bastante ambicioso...
O Ipea é um instituto de pesquisa aplicada, não adianta só
saber dados estatísticos e ter a compreensão das classes sociais. O Ipea tem
que produzir para a sociedade. Para mim, a pesquisa só faz sentindo se é
aplicada, se melhora a vida das pessoas. Se não, é blá blá blá, serve para
enfeite, vaidade individual, mas não é ciência efetiva. A ciência existe para
melhorar a vida das pessoas ou não merece esse nome. A gente quer compreender
quem são os brasileiros para melhorar a vida deles. O terceiro eixo será
inovação institucional.
A melhora seria via instituições?
Exatamente, construindo uma inteligência institucional. As
pessoas estão sempre dentro de alguma instituição, que são os grandes elementos
para melhoria da vida de homens e mulheres comuns. É isso que a gente quer. Se
não conseguir isso, a gente fracassou. A ideia é dotar a instituição educativa,
a de saúde, a de treinamento profissional de uma inteligência para adaptá-las
às necessidades das pessoas. Fazer com que diminua o que se poderia chamar de
má-fé institucional. O que é isso? As instituições normalmente prometem uma
coisa e frequentemente entregam outra. Não tem nenhuma maldade das pessoas,
elas não dizem: ‘vou produzir mal, vou educar mal’. Não é isso. Acontece que a
lógica institucional faz com que o resultado seja diferente da intenção
original. A gente quer melhorar esse quadro. A sociedade brasileira sempre fez
política para a classe média. Nos últimos dez ou 15 anos, houve ascensão enorme
de pessoas que estão entrando em novas instituições, nas universidades e que
vêm de uma vivência muito distinta da de classe média. Há 70% da população que
não são de classe média e só são conhecidos de forma fragmentada.
Até pouco tempo, o discurso da SAE e do Ipea era que a ascensão desse
grupo fez o Brasil ter mais da metade da população na classe média. O senhor é
um crítico da definição de classe média apenas com base na renda. E agora? O
Brasil deixa de ser país de classe média?
O termo não é o principal. É inegável que houve ascensão.
Foram pessoas que estavam excluídas da sociedade e entraram no mercado
competitivo, como trabalhadores e consumidores. Entrar no consumo é a dimensão
mais importante. Só não se pode dizer que sejam classe média, porque a classe
média é rigorosamente uma classe privilegiada, e essas pessoas não são
privilegiadas. É uma classe que luta para se manter onde está e precisa ser
capacitada. É o que a gente quer fazer. Se ao fim e ao cabo, terminar por se
constituir, a longo prazo, um país de classe média, ótimo.
Então, pode mudar o nome, mas este grupo continua no foco?
Este grupo é o foco central da capacitação, e esta é uma
agenda capacitadora. Para atender às demandas das empresas, mas antes de tudo,
para ter um trabalhador mais produtivo, um pequeno empresário que possa achar
seu nicho de negócio, compreender as variáveis complexas da economia. Como
fazer? Esse é o desafio que a gente quer encarar de frente.
Seu conceito de produtividade não deve ser o mesmo dos que reclamam do
descasamento entre a alta da renda e o da produtividade do trabalhador...
É claro que não, você não pode reclamar da baixa
produtividade, imaginando que todos os seres humanos são como você, da sua
classe. Mas é assim que as pessoas pensam: "se consegui fazer meu curso de Economia
em Havard, por que essa pessoa não consegue ao menos manejar uma máquina
direito?” No fundo, nós todos universalizamos o sujeito de classe média e,
cheios de preconceito, dizemos: por que o cara é tão burro e preguiçoso que não
consegue nem montar o negócio dele? Não é a nossa perspectiva. Vamos entender
essas pessoas pelo modo como foram construídas e abandonadas, não só pelo
governo, mas pela sociedade. As pessoas têm que ser compreendidas em todas as
dimensões, para que a escola funcione, a saúde seja melhor. Não adianta fazer
cursos-padrão como se servissem a todos. O Brasil não conhece o Brasil, só faz
de conta que conhece, o que é muito pior.
Como o senhor vê os protestos de 2013 e as passeatas deste ano?
Este é um dos pontos que a gente precisa compreender, quais
são as demandas dessas pessoas. O Brasil desconhece o Brasil, em especial o
Brasil que sempre foi ocultado, que são esses 70%. As pessoas normalmente
chutam, acho que é isso, que é aquilo. A gente quer responder perguntas sem
"achismo”. Não é só ouvir as pessoas, é conhecer e, em certa medida,
reconstruir o sentido da sua ação, porque elas, muitas vezes, não sabem o que
são. Não é pesquisa quantitativa, é qualitativa, acompanha muito mais coisas.
Os mais pobres, por exemplo, tendem a fantasiar a vida porque, se a realidade é
intragável, a única saída é a fantasia. Então, temos que compreendê-las para
além da fantasia. Tem uma certa forma de etnologia vulgar que pega a fantasia
das pessoas e apresenta como a verdade delas. A gente quer fazer um trabalho
melhor, sofisticado, para que quando houver a manifestação a gente possa
entender.
Qual é o outro projeto estratégico?
O segundo pretende estudar países em situação semelhante ao
Brasil e países diferentes, como EUA e Alemanha, para aprender porque, algumas
coisas neles deram certo e aqui não, e vice-versa. Aprender e ensinar, porque
não é uma via de mão única, há coisas que o Brasil faz melhor do que a Alemanha
etc. Obviamente, isso está em consonância com a dimensão política. Temos a sorte
de ter um ministro como o Mangabeira Unger, na SAE, e uma presidente que o
estimula na produção de alternativas. São propostas de interesse do governo.
O senhor combinou com o Joaquim Levy (ministro da Fazenda)?
Risos.
Porque pesquisa custa dinheiro, e recentemente, vimos o IBGE cancelar
projetos por corte no orçamento.
É claro que é melhor ter dinheiro que não ter, mas, ao mesmo
tempo, dinheiro não é tudo. Uma coisa mais importante, e estou citando o
ministro Mangabeira, são ideias. Ideias são o que há de mais importante no
mundo. Com dinheiro e sem ideias você não faz nada. E com ideias e um pouco de
dinheiro você faz muita coisa. Se é algo importante, que a sociedade e o
governo precisam, não vai faltar dinheiro. Minha vida inteira mostrou isso. Com
muito pouco dinheiro, a gente fez coisas relevantes, fez o primeiro estudo
sobre os excluídos do Brasil. Agora, temos a estrutura do Ipea, com o que já vi
do trabalho fiquei encantado. São centenas de técnicos extremamente bem
treinados, alguns dos melhores do país. E usaremos a capacidade instalada da
inteligência nacional e internacional.
Esse projeto coincide com a fala do ministro Mangabeira sobre a agenda
estratégica pós-ajuste?
Não por acaso. O que estamos tentando é fornecer elementos
para que o ministro Mangabeira possa montar essa estratégia pós-ajuste, que tem
a ver com melhoria coordenada das instituições brasileiras. É uma grande
ambição, mas seremos humildes. Ambição e humildade são duas coisas que as
pessoas imaginam antagônicas, mas não são, porque se você é humilde, você ouve
as pessoas, aprende, aceita ajuda e consegue um resultado importante.
Qual será o ponto de partida?
Isso é que estamos fazendo agora, o esboço do projeto, mas não vamos ficar seis meses montando. Espero em um mês estar com o projeto pronto e apresentar resultados a cada três meses. No início, ele precisa maturar, mas acredito que em seis meses a gente possa ter resultados práticos.