A polêmica das marginais em São Paulo - O Contexto (parte 1)

27/10/2016 09:30 - Mario Eduardo Garcia

Texto originalmente publicado no site do autor 

Leia o primeiro artigo da série: A polêmica das marginais em São Paulo - O Contexto

A questão dos limites de velocidade nas marginais Tietê e Pinheiros de São Paulo e dos acidentes entrou na agenda eleitoral no último pleito e continua ecoando nos fronts político e técnico. É bom que seja ventilada, pois o tema da segurança é crítico, especialmente nessas duas importantes vias da maior cidade do país. Mas será lastimável se uma eventual insuficiência da discussão der origem a decisões impensadas no início da próxima gestão municipal. 

As dimensões mundiais do problema de segurança na circulação são bem conhecidas. O trânsito de veículos motorizados mata mais do que as guerras. É a principal causa de morte entre jovens no mundo. Essas razões levaram a Assembléia Geral da ONU a proclamar o peri´odo 2011–2020 como a de´cada da ac¸a~o em prol da redução dos acidentes no trânsito. O livro "Segurança Viária", publicado em 2012 pela Escola de Engenharia de Sa~o Carlos, SP, informa que "(...) morrem cerca de 1,3 milha~o de pessoas por ano em acidentes de tra^nsito (quase 3.600 mortes dia´rias) e aproximadamente 50 milho~es sofrem algum tipo de lesa~o — muitos ficando com sequelas fi´sicas, mentais e/ou psicolo´gicas que impedem uma vida normal."

Se o trânsito viário é letal, suprima-se o trânsito. Há uma geração atrás isso pareceria  absurdo, hoje nem tanto. A cidade inteligente, drones comerciais, multiplicidade das redes e internet das coisas estão mudando os conceitos de trabalho e ensino, atividades que geram as maiores demandas de mobilidade. Então, quem sabe, um dia a circulação na superfície poderá vir a ser reservada aos deslocamentos para lazer e convívio, enriquecendo o desfrute dos prazeres existenciais na cidade. 

Experimentos a um só tempo avançados e tímidos da cidade inteligente, como em Songdo, na Coréia do Sul, já se iniciam. Todavia, embora eles aumentem o ritmo pulsante das quebras de paradigmas, ainda não chegamos ao futuro. Enquanto isso temos que fazer a lição de casa, combatendo a calamidade desde já, para pavimentar a trajetória para o intrigante amanhã.

Panorama brasileiro 

O Brasil, lamentavelmente, ocupa posição proeminente na catástrofe do trânsito. Ao longo dos últimos anos apresentou elevado índice de [fatalidades anuais por 100.000 habitantes], oscilando em torno de 20, como mostrado no gráfico abaixo (linha vermelha). Enquanto esse indicador tem tendência levemente crescente, a escalada de um de seus fatores, o número de fatalidades (colunas em azul), é bem mais acentuada e preocupante. 

 

Fonte: Folha de São Paulo, edição online, 14/10/2016

 

Examinemos agora o gráfico abaixo, extraído do site Vias Seguras, para termos uma idéia de como esse desempenho se situa no plano internacional . Dos países que estão aí representados o Brasil é o de maior índice [fatalidades por 100 mil habitantes], embora seja apenas o quarto em taxa de motorização, que é a quantidade de veículos por 100 habitantes. O fato de apresentar densidade demográfica (entre parênteses no gráfico) comparativamente pequena -- indicativo de uma rede viária nacional também menos densa, portanto mais difícil de gerir e manter -- não nos absolve. De um lado porque grande parte dos deslocamentos em países intensamente urbanizados obviamente se dão nas cidades [1]. De outro porque territórios com densidade demográfica menor ou equivalente à brasileira, como os de Rússia e Estados Unidos (EUA), este com elevadíssima taxa de motorização, apresentam índices de acidentes menores ou muito menores do que os nossos.

 

No Brasil, coincidentemente, em 2013 o valor do índice de fatalidades por 100 mil habitantes é da mesma ordem de grandeza do da densidade demográfica [2]

 

Se fizermos uma análise superficial, tomando como variáveis unicamente as três grandezas consideradas no diagrama, apuraremos que o índice de fatalidades em nosso país deveria ser bem mais baixo, parecido como o dos EUA (3). Com a ressalva das simplificações adotadas na análise, essa constatação dá uma ideia da magnitude do desafio da segurança do trânsito no Brasil. E note-se que o índice americano não é tão meritório. É significativamente elevado, quando comparado com os do Japão e dos países europeus.

Outra forma de avaliar a árdua tarefa que temos pela frente é examinar o andamento  do programa brasileiro no contexto da década da segurança proclamada pela ONU. Na  edição online já citada da Folha de São Paulo os utilíssimos infográficos interativos permitem acessar o diagrama abaixo, destacando a década 2011-2020. Observa-se que a projeção, baseada no andamento histórico até 2011, levaria ao astronômico número de 58,8 mil fatalidades em 2020. A meta da década é reduzir esse número para a metade, 29,4 mil. Essa meta requer que a evolução do índice ocorra segundo a linha verde [4]. A linha azul indica o avanço efetivo, mostrando que após um desempenho promissor em 2013, o andamento piora em 2014, quando tivemos 43 mil fatalidades e se afasta da desejada linha verde.

 

O gráfico fala por si. Precisamos reagir de imediato para não malograr no cumprimento do objetivo da década. Será um primeiro passo para que, depois de 2020, possamos intentar a única meta que, carregada de simbolismo, faz sentido em acidentes de trânsito, que é a meta zero ou visão zero.

Dados do município de São Paulo

Os desempenhos do estado de São Paulo e do município da Capital são vitais para o sucesso da cruzada da década do trânsito. É tão marcante a presença de ambos na frota brasileira que sem melhoria significativa em seus territórios o objetivo nacional da década não será atingido. Essa participação, em quantidade de veículos, no ano de 2014, pode ser observada na tabela mostrada a seguir.

Na terceira coluna as %s indicam a participação da frota de cada unidade federativa, em relação à frota nacional. Na quinta os percentuais designam a participação das motocicletas na frota de cada unidade federativa. 

O estado de São Paulo abriga praticamente a metade da frota nacional e um único município, o da Capital, comparece com inacreditáveis 14%. É interessante lembrar que em 2014 os indicadores de [fatalidades por cem mil hab] em ambos, estado e município, foram bem melhores (isto é, mais baixos) do que a média nacional de aproximadamente 22. No estado foram 15,9 e no município 10,4. Por isso o desafio da melhorá-los torna-se  espinhoso. Quanto mais baixos os índices, mais difícil reduzi-los. 

Nos esmerados infográficos da FSP obtemos os valores dos índices dos estados brasileiros de melhor desempenho. Observamos também que, considerados todos os estados, os valores 11,8 (o melhor) e 40,1 (o pior) do indicador são os extremos da faixa que contém todos os estados. 

 

Com relação ao município da Capital de São Paulo, o relatório anual da CET de 2014, último ano antes da alteração do limites de velocidade nas marginais, nos informa na tabela a seguir transcrita que nesse ano tivemos cerca de 1,2 mil mortes no trânsito. Como em 2014 a população era de 11,9 milhões de habitantes na Capital,  o índice de fatalidades era 1249/119 = 10,4 [fatal/100 mil hab], com a seguinte distribuição quantitativa das vítimas:

 

 Choque: 1 veic em movimento x 1 objeto ou veic parado

           Colisão: entre 2 veic em movimento

 

A CET-SP naquele mesmo relatório aponta a frota de veículos registrados, como segue:

 

 

Combinando os dados da tabela e do gráfico vemos que a taxa resultante de fatalidades de usuários de veículos motorizados, por tipo de veiculo, agregado para [automóveis + ônibus + caminhão] é 207 / [(6524+80+153) x 1000] = 0,030/1000 e para motocicletas é 440 /[1041 x 1000] = 0,423/1000 ou seja, para os usuários do transporte motorizado, as motos são 14 vezes mais letais do que os demais veículos (!). Essa aferição numérica do risco motocicleta evidencia que a participação comparativamente baixa das motos na frota do município (13% no município contra 24% na frota nacional) certamente é uma das causas do menor índice de fatalidades na Capital.   

Vejamos a seguir os gráficos abaixo, para examinar o andamento dos totais de acidentes fatais e mortalidades na Capital do estado, ao longo de um período razoável de tempo.

 

 

No gráfico de Acidentes Fatais por tipo de veículo envolvido [5] observa-se que em 2014 o total foi menor do que em 2005 e que nesse intervalo de quase 10 anos os dois tipos predominantes de acidentes são com automóveis e com motocicletas. O gráfico seguinte à direita exibe redução também da quantidade de mortes, que é de 17%, já computada a reversão da tendência em 2014 (que aliás é similar à ocorrida no plano nacional) [6]. No terceiro diagrama, extraído diretamente do relatório da CET, notamos que as frotas de autos e motos (os que mais contribuem para acidentes), somadas, evoluíram nesse período de 5.333 para 7.888 unidades, portanto um substancial acréscimo de 48%. Nesse total, enquanto o aumento de automóveis foi de 42% o de motocicletas -- com seu alto índice de letalidade, como já mostrado -- foi de 112 %. Portanto, enquanto os índices nacionais pioraram, como antes exposto, os do município melhoraram, não obstante os aumentos de frota, em especial o de motos. 

Os dados acima, nacionais e municipais, constituem apenas um sumário estatístico para ajudar a entender a situação da segurança do trânsito no país e no município de São Paulo, tomando como parâmetro o índice de fatalidades e os objetivos da década 2011-2020.  Salvo em um aspecto pontual relativo às motocicletas, não foram realizadas análises para explicar o grande diferencial entre os indicadores do país e locais. O melhor desempenho de segurança no município certamente deve-se a uma gama de fatores, cujo estudo e discussão transcende os limites deste post. Mas não se deve deixar de registrar a contribuição advinda das práticas da gestão do trânsito municipal ao longo dos anos, sustentada pela dedicação e qualificação do corpo de profissionais que a integram. 

De todo modo, como  já dito, é forçoso continuar a faina para reduzir ainda mais o índice de mortalidade no município. Não se trata apenas de ajudar na luta nacional para cumprir a meta da década. A experiência de outros países mostra que um desafio mais ambicioso pode e deve ser perseguido, mesmo porque, no longo prazo, repita-se, o objetivo de um programa de segurança no trânsito só pode ser zerar as fatalidades. A NT 232, a nota técnica da CET SP a que aludimos anteriormente [7], argumenta no mesmo sentido ao exibir uma elucidativa tabela, abaixo transcrita, comparando os índices das cidades de São Paulo e Nova Iorque. 

A dados são autoexplicativos e eloquentes. A excelência do desempenho da cidade de Nova Iorque em matéria de segurança no trânsito -- com indicador muito melhor do que a média dos EUA -- repercute na taxa equivalente do estado que abriga essa metrópole. Ao examinar os fatality facts do Insurance Institute for Highway Safety apuramos que o estado de Nova Iorque é também o que apresenta o menor índice de fatalidades entre todos os seus congêneres americanos. 

Em qualquer esforço para reduzir as fatalidades no trânsito do município de São Paulo as marginais do Tietê e do Pinheiros são uma alta prioridade. Essas vias têm sido,  nessa ordem, consistentemente, as com maiores incidências de mortes no trânsito. Essa afirmação não é novidade, os números são conhecidos.

Delineados neste post os grandes números dos acidentes e suas consequências fatais, nos planos nacional e do município de São Paulo, fica esboçado o pano de fundo para um olhar com foco nas marginais, em particular a do Tietê. É o que faremos no segundo post desta série.

Mario Eduardo Garcia - Consultor de Mobilidade

Notas

 

[1]  Por exemplo, segundo o Insurance Institute for Highway Safety nos EUA em 2014 a distribuição dos acidentes (colisões + choques, etc} foi de 47% urbanos, 51% rurais e 1% desconhecidos. http://www.iihs.org/iihs/topics/t/general-statistics/fatalityfacts/state-by-state-overview#Rural-versus-urban 

[2]  Observe-se que, provavelmente devido ao uso de diferentes atualizações da base de dados Datasus de mortalidades referentes ao ano de 2013, o índice comparece no gráfico das Vias Seguras com valor um pouco acima de 23,0, contra os 21,0 do gráfico da  FSP. Como este último deve estar mais atualizado, estamos adotando esse valor na estimativa da nota [3] abaixo

Em geral, os dados apresentados neste post podem apresentar diferenças de pequeno porte face aos constantes de outros trabalhos sobre segurança, por terem os dados anuais sido extraídos pelos autores em meses distintos, dentro de cada período anual. 

[3] Para uma apreciação expedita tomemos inicialmente a relação entre as densidades  demográficas de EUA e Brasil, que em 2013 era EUA/BR = 33/24 = 1,37. A relação entre as taxas de motorização dos dois países era 85/41 = 2,07 e entre as populações totais de 316/201 = 1,57. Se admitirmos, como proxy bastante rudimentar, que fossem essas as únicas variáveis que determinam, linearmente, a incidência de fatalidades no trânsito, o indicador desses incidentes no Brasil, tomando o dos EUA como referência, deveria ser de 21x [1,37/(2,07x1,57)] = aproximadamente 9 ou seja, menos da metade da  efetivamente ocorrida em 2013.

Obviamente um método mais apropriado para essas avaliações expeditas seria correlacionar o indicador de mortalidade e o total de veiculo.km rodados em cada país, mas não pudemos localizar esse último dado nas estatísticas brasileiras.

[4] Considerando a projeção do IBGE de 212 milhões de habitantes em 2020, o cumprimento da meta acarretará um indicador de mortalidade igual a 14 nesse ano, bem inferior ao hoje vigente, mas significativamente acima do atual dos EUA, tomado anteriormente neste post como referência. 

[5] Notar que um acidente com dois tipos de veículo é contado duas vezes. 

[6] Alguns atribuem esse acréscimo, dentre outras causas, aos eventos da Copa  

[7] NT 232 "Evolução do número de mortes no trânsito em São Paulo" de Max Ernani Borges De Paula, 2014.