A saga do ônibus: Violência (6º Capítulo)

02/04/2018 14:21 - Claudio de Senna Frederico


Hoje o assunto da violência acompanha todas as pessoas durante todas as horas em que não estão dormindo e, possivelmente, também durante o sono. Não pretendo tratar do quanto isso se deve a condições reais que vivemos e quanto isso se deve à difusão do medo como fenômeno de comunicação que imprime sentimentos. O objetivo aqui é procurar indicar algumas medidas práticas possíveis para os tipos de violência que atormentam as partes interessadas no transporte público, em particular o realizado em ônibus urbano.

Mas para indicar direções a seguir para evitá-la, será necessário agrupá-la por semelhanças - e diferenças – entre os que as praticam e aonde, quando e um pouco por que razão escolhem certas formas de violência.

Em primeiro lugar, os interessados são os de sempre: primeiro o público, tanto aquele que o utiliza - que por motivos óbvios se interessa - quanto o que não o utiliza mas forma opiniões e as propaga, ajudando na formação dos preconceitos. Em segundo lugar estão os proprietários dos ônibus que veem ou seu patrimônio ameaçado pela depredação, ou seus custos aumentados pela responsabilidade legal atribuída só a eles por nossa legislação quando se trata de violência contra os passageiros. O terceiro interessado é o poder público que tem seus custos policiais e judiciários pressionados pelos casos de violência contra o patrimônio ou a pessoa e seu “custo político” pelo grande público, repito, quer dos passageiros quer dos outros que assistem a tudo. O quarto interessado, normalmente não classificado neste grupo, são os que praticam a violência. Interessante e indispensável conhecê-los melhor, para poder formular medidas práticas.

No metrô no início da década de 70 foram várias as providências para evitar a violência. O primeiro componente foi o tecnológico, com a primeira rede de circuito fechado de TV ligado a seu Centro de Controle Operacional, outro recurso que, com sua rede de comunicações e alarmes, pretendia criar um ambiente de intensa supervisão e de resposta rápida de uma “autoridade” central, bem ao gosto de um tempo de governos autoritários e de pouca preocupação com direitos individuais. Como braço de ação local foi criado um Corpo de Segurança, inicialmente com poder de polícia e com a novidade de não utilizar armas. Até hoje, a principal proteção dos agentes do metrô é o conhecimento generalizado de que sem armas não representam perigos aos criminosos que estimulem batalhas internas que poriam em risco os passageiros. Sua função é afastar os riscos do interior do sistema, e não capturar os criminosos. O resultado fala por si pois, apesar de tudo, o metrô ainda é muitas vezes mais seguro do que os bairros por que passa.

A violência nos ônibus faz parte de uma outra realidade, a começar pelo que já abordamos nessa série várias vezes: trata-se de uma atividade híbrida em que grande parte da qualidade e confiabilidade de seus serviços depende de realidades estranhas ao seu controle. Seu mundo se confunde com as ruas e calçadas da cidade cuja segurança depende dos agentes públicos. O que acontece mesmo no interior de seus veículos, sua área mais íntima, é por sua própria natureza acessível a qualquer habitante da cidade.

Mas, o que acontece nos ônibus que gera sua imagem de insegurança?

Existem os crimes, e os termos são meus, de negócio, os de comportamento, os de ostentação, os de expressão e os táticos.

Os de comportamento são aqueles que são praticados por pessoas que veem o local apenas como oportunidade para seus comportamentos antissociais. São os de pequenos vandalismos e os mais graves de agressão e assédio sexual. Além de um sistema de imagens como o do metrô e a conquista de uma rejeição social, o principal instrumento será uma menor densidade durante os horários de movimento que torne as ações desse tipo mais arriscadas e menos atraentes.

Os de negócio são aqueles praticados com objetivos de lucro rápido e fácil, pelo assalto ao caixa do ônibus ou roubo e assalto aos passageiros. No primeiro caso, a solução passa pela eliminação de transações de compra de passagens em seu interior. No segundo, a ação é semelhante ao que deve acontecer em toda a cidade e pode também fazer com que o negócio fique menos vantajoso no interior dos ônibus pela utilização de tecnologias de supervisão inteligente de imagens com identificação de suspeitos cadastrados.

A violência de ostentação está ligada principalmente a uma faixa etária em que a afirmação e identidade tribal já ocorre pela inclusão em grupos de violência. É apenas parte de outras manifestações como as torcidas organizadas e as gangues de bairro. É um facilitador no recrutamento de jovens para se tornarem úteis ao tráfico de drogas como “aviões” e sentinelas. Esse fenômeno não é de hoje, nem exclusivo do Brasil, e incluiu no passado grande parte da motivação dos quebra-quebra de bondes da década de 50 que, embora tivessem a imagem única de manifestação, eram em grande parte sustentadas pela garotada de classe média e média baixa para se afirmar e se divertir.

A violência de turmas na América não é um problema súbito. Tem sido uma parte da vida urbana há anos, oferecendo uma definição e identidade agressivas aos que procuram formas de pertencer no caos das grandes áreas metropolitanas. (Dave Reichert, minha tradução)

Os jovens em geral, mas principalmente os de menor renda, sentem que entre seus pares têm apenas duas escolhas: ou se tornam identificados com os que são violentos e não respeitam as leis ou se tornam indivíduos a serem desrespeitados por elas e, muito importante, pelo sexo oposto.

Chegamos aos episódios mais emblemáticos da violência contra os ônibus ilustrados pela imagem de um ou mais ônibus queimando.

Suas causas em primeiro lugar estão relacionadas ao que chamei de violência de expressão e se assemelham aos que ocorriam com os trens de subúrbio em São Paulo e Rio de Janeiro principalmente. Esta categoria é certamente a mais rica e complexa para ser interpretada.

É verdade que parte de sua mão de obra se encontra na classificação anterior, a de ostentação, mas acrescenta outros fatores muito peculiares.

A violência é uma questão de poder. As pessoas se tornam violentas quando se sentem impotentes. (Andrew Schneider)

A primeira pergunta que surge - e que não é tão importante - é a que indaga qual a razão da manifestação. A segunda - e mais interessante - é a que procura saber os motivos de os ônibus queimados serem a escolha preferencial no momento.

Respeitáveis opiniões indicaram que os trens, antes os alvos preferenciais, eram mais inflamáveis e que se tornaram mais resistentes, enquanto os ônibus têm muitos materiais combustíveis.

Pensando como um agente da manifestação, essa explicação não me convence, pois os automóveis estão disponíveis em todos os locais, são mais combustíveis ainda e causariam mais repercussão ainda. Isso sem contar, por exemplo, postos de gasolina, sensacionais bombas disponíveis ou fábricas e depósitos.

A outra que me adiantaram, e que me parece mais importante, é a de que se trata de uma propriedade que embora de fato privada tem a imagem do governo. Queimá-la, além de ser uma violência contra o Estado, parece não prejudicar ninguém mais.

Outra variável a ser considerada é a impunidade que está ocorrendo no incêndio dos ônibus, inclusive em termos de mobilização e opinião já que basta comparar sua repercussão com a de incêndios de carros, por exemplo. Um ônibus em termos de capacidade de transporte equivale em um dia a mais do que 300 carros particulares. Se em vez de um ônibus se queimassem a toda hora 300 ou 3000 automóveis em nossas cidades, a sociedade toda estaria mobilizada. No entanto nem mesmo os passageiros dos ônibus se veem hoje revoltados com o que ocorre com seu transporte. O poder público não indeniza seu concessionário e discute incluir seu prejuízo na tarifa. Parece ser o crime perfeito: aparece, é noticiado, mas depois some do radar inclusive da polícia, como se fosse um tipo de direito de manifestação.

Para mim esta é uma das principais causas dessa forma de violência de manifestação permanecer por tão longo tempo na lista das preferidas. Sua absoluta impunidade, inclusive na opinião pública que não se considera pessoalmente atingida. O mesmo ocorre com as outras já consideradas aqui. Não existe, como no metrô, nem uma corporação especializada em combate-la nem uma prioridade e uma atenção especial como existe com outras instalações de transporte como aeroportos. No entanto, o transporte público por ônibus reúne a maior parte da movimentação diária em áreas bem restritas e que deveriam ser objeto prioritário dos agentes de segurança. Numa política de tolerância zero o local a começar seria nele, da mesma forma que ninguém vai pescar camarão passando aleatoriamente a rede, mas sim procurando os cardumes. E os cardumes da violência acompanham a concentração das vítimas.

 A última categoria de violência nos ônibus, a tática, não tem a emoção das anteriores e acontece porque é útil. Sim, mesmo as anteriores também são úteis e servem para se distrair, para lucro imediato, para se afirmar, para manifestar, mas, nesse caso estamos falando de uma utilidade que faz parte de uma campanha. Incendiar ônibus é uma forma fácil de incomodar o poder público mesmo que apenas em forma de notícia, de definir e controlar o que as forças policiais devem fazer hoje, de imobilizá-las enquanto outras ações estão acontecendo, de demonstrar poder e aliciar novos recrutas para se sentirem mais poderosos.

Sim, a violência, inclusive nos ônibus, também é uma atividade econômica como qualquer outra, uma profissão, uma forma de se planejar o futuro, sustentar a família e estabelecer seu lugar ao sol. Os ônibus sendo queimados ou assaltados são presas fáceis, com baixo risco e pouco apoio e empatia.

Mas se é importante coibir qualquer violência, a que atinge milhões de pessoas que são obrigadas diariamente a se expor para conseguir seu sustento ou preencher suas necessidades diárias, incluindo crianças e toda a família, deveria estar no primeiro lugar da lista. Como o transporte por ônibus ocorre com horários e rotas absolutamente definidas, os crimes lá praticados são também anunciados e não deveriam ser tolerados. A opinião e o apoio público precisam ser mobilizados para que o que ocorre nos ônibus seja objeto de, pelo menos, o mesmo repúdio causado por ameaças aos automóveis particulares.

Toda violência é repugnante e inaceitável até o momento em que, dela, lucra-se e torna-se um entretenimento. (Glauber Lima)





No próximo capítulo:

Futuro

Quais as tendências para os ônibus?  Qual será sua função na mobilidade do futuro?



Claudio de Senna Frederico - consultor e membro do conselho diretor da ANTP, além de Vice-presidente