Do ponto A para o ponto B

04/05/2016 13:30 - ANTP


"Como vocês aguentam isso?", tive a vontade de perguntar aos gritos para a massa espremida no vagão. Em vez disso, fiquei observando os rostos impassíveis das pessoas. Elas aguentam porque não têm escolha. Elas aguentam porque estão acostumadas. (Lucy Kellaway, colunista do Financial Times, sobre o transporte de massa em Londres)

Lucy Kellaway, colunista do renomado Financial Times, mora em Londres e vai ao trabalho de bicicleta. Agora, como conta numa bem-humorada crônica, ela se encontra impossibilitada de continuar sua rotina após sofrer um acidente... de bicicleta.

Apesar de Londres ser um paradigma mundial por conta do excelente sistema de transporte público que possui, Lucy mostra o outro lado da moeda: andar de bicicleta por lá é arriscado, a ponto de ter recebido inúmeras mensagens de seus leitores aconselhando-a a desistir. Como ela conta. todos afirmavam que "é uma loucura andar de bicicleta em Londres e que eu deveria aprender a lição".

Independente disso, o interessante é o périplo que a colunista empreende para descobrir o melhor meio para ir trabalhar enquanto não pode voltar a usar sua bike. 

"Nas três últimas semanas venho experimentando várias maneiras de percorrer os sete quilômetros de minha casa até a sede do Financial Times em Southwark - metrô, trem, Uber, a pé, de ônibus e uma combinação de todos".

Com exceção de carro particular, "que não é uma opção porque não tenho onde estacioná-lo no trabalho", e levando em conta desde a questão tempo, custo, até o bem-estar, Lucy descreve os prós e contras de cada tentativa.

Apesar das mortes de ciclistas estarem em queda em Londres, "isso ainda significa que mais de uma dezena deles morrem todos os anos e cerca de 400 sofrem ferimentos graves". É isso que a assusta (em dez anos ela já sofreu três acidentes que exigiram visitas ao hospital), e ela pondera que "sentir-se vivo ao andar de bicicleta é algo que pode acabar mal".

No final das contas, e após experimentar outras formas de locomoção, Lucy acaba por concluir que "a bicicleta é de longe a maneira mais rápida, satisfatória e quase a mais barata de se ir para o trabalho".

Sem entrar na discussão das vantagens e desvantagens da bicicleta, algumas questões ficam claras no artigo de Lucy Kellaway. A primeira delas é a profusão de alternativas que o londrino possui para se deslocar, mas que mesmo assim apresentam contratempos comuns às grandes cidades: o trânsito pesado quando ela utilizou o Uber; o metrô, "que estava tão lotado que não tive espaço nem para averiguar meu celular, quanto mais ler um jornal"; o trem de superfície, com menor frequência que os outros modais (além da lotação no rush); as frequentes paradas do ônibus; e por fim a caminhada (83 minutos para ir, o que a desanimou a refazer o caminho na volta, optando pelo trem).

A segunda questão é que para uma imensidão de pessoas, morando em locais os mais diversos e se deslocando para destinos os mais distintos, quanto maior a quantidade de combinações possíveis de transporte à disposição do cidadão, melhores serão suas possibilidades de escolha.

A terceira questão, e que se completa às duas primeiras, é que não se é possível ignorar modais como bicicleta e caminhada, essenciais para curtas distâncias ou para composição com outros modos. Além do mais, como a colunista assevera, se utilizar de transporte público (ou automóvel) para longos deslocamentos "pode nos deixar irritados, deprimidos, cínicos e propensos a um ataque do coração e distúrbios osteomusculares - especialmente se viajamos sentados e imóveis". Em suma, entra no campo das ponderações de escolhas a questão da saúde, geralmente ignorada quando se trata do tema mobilidade urbana (a não ser quando se trata de segurança - acidentes, atropelamentos, quedas em calçadas, etc).

Todos sofremos "com as agruras dos caminhos alternativos para chegar do ponto A ao ponto B", como descobriu Lucy em suas tentativas. E este talvez seja um dos grandes problemas para os trabalhadores nas metrópoles, ao lado da menor oferta de alternativas para se locomover em nossas cidades. No Brasil, para tornar mais agudo o problema, há uma imensa distância entre os locais de moradia e os empregos, o que nos leva a um sério problema: maior tempo de percurso, o que ocasiona uma baixa taxa de renovação nos ônibus, trens e metrôs. Entre o ponto "A" e o "B" tem-se uma enorme distância, e uma baixíssima oferta de trabalho.

Outro grave problema está ainda na baixa informação de como se pode (e se deve) utilizar a rede de transportes das cidades, incluindo aí, por evidente, caminhada e bicicleta como opções necessárias. A desinformação, consequência natural da ausência de comunicação ao usuário dos fornecedores de transportes, é seguramente um fator que ajuda a piorar muito a situação.

Juntando-se todas estas observações, a conclusão é a triste realidade a que está condenado o usuário, objeto principal de toda e qualquer ação executada em benefício da mobilidade. Enquanto as questões de fundo não são resolvidas – como, por exemplo, a de aproximar o trabalho do emprego, o que irá requerer alterações de fundo nos Planos Diretores Municipais – o cidadão precisa ao menos saber quais são as opções que possui para se locomover em sua cidade dentro de suas necessidades – de vida e de salário.

Na ausência de pesados investimentos em infraestrutura, caberá aos prefeitos definir os mínimos reparos a serem realizados a fim de otimizar o que as cidades já possuem em prol da melhoria da mobilidade urbana: um plano para recuperar as calçadas; estimular e integrar à rede todas as formas de transporte ativo; propagar a cultura do compartilhamento, reduzindo assim o desperdício nos deslocamentos, dentre algumas ações. 

Destaques


Brasil terá primeiro festival de filmes sobre mobilidade urbana

Objetivo é estimular a população a refletir e propor soluções a esses problemas, além de dar conhecimento da grande produção áudio-visual que temos sobre o assunto. Será realizado nos dias 12, 13 e 14 de Agosto, no Centro Cultural São Paulo. Haverá um seminário sobre mobilidade e segurança (organizado pela ANTP), e dois dias de projeção de filmes. Veja aqui como inscrever seu filme, e conheça o site oficial do evento (mobifilm.com.br).



MATÉRIAS RELEVANTES SEMANA - 20 a 27 de abril)



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